Revista Andes, Antropología e Historia
Vol. 34, Nº 1,
Enero – Junio 2023
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ISSN Nº 1668-8090
A FORMAÇÃO
SOCIAL DO QUILOMBO-INDÍGENA TIRIRICA
DOS
CRIOULOS: CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DAS
RESISTÊNCIAS
E DAS LUTAS DECOLONIAIS
LA FORMACIÓN SOCIAL DEL QUILOMBO-INDÍGENA
TIRIRICA
DOS CRIOULOS: APORTES AL ESTUDIO DE LAS
RESISTENCIAS Y LUCHAS DECOLONIALES
THE SOCIAL FORMATION OF THE
INDIGENOUS QUILOMBO TIRIRICA DOS CRIOULOS: CONTRIBUTIONS TO THE STUDY OF
RESISTANCE AND DECOLONIAL STRUGGLES
Caroline Farias Leal Mendonça
Universidade Federal de Pernambuco/Brasil
caroline.mendonca@ufpe.br
Sandro Henrique Calheiros Lôbo
Curso de
Direito da Faculdade Cesmac do Sertão, Alagoas/Brasil.
sandro.lobo@cesmac.edu.br
Fecha de ingreso: 23/05/2022 - Fecha de
aceptación: 24/11/2022
Resumo
Este artigo busca apresentar, por meio da descrição
etnográfica, o processo histórico e político de formação de uma comunidade rural,
a Tiririca dos Crioulos, autoidentificada ‘quilombo-indígena’, no sertão do São
Francisco, em Pernambuco, nordeste do Brasil. Do ponto de vista jurídico, a
Carta Constitucional de 1988 define as categorias identitárias indígenas e
quilombolas em sujeitos de direitos distintos. Todavia, a realidade empírica
demonstra o quanto as formas de resistência à colonialidade do poder, tal como
propõe Aníbal Quijano, são bem mais amplas e complexas: resultam em
heterodoxias desafiadoras ao Estado colonial brasileiro confrontando poderes
locais. Pensar quilombo-indígena como categoria local de resistência implica
questionar as categorias jurídico-políticas coloniais. Ao mesmo tempo, parece
desafiar à formulação de políticas públicas - incluindo nelas o reconhecimento
territorial. Apoiados em Frantz Fanon e nas teorias decoloniais (Arturo Escobar; Rita Segato; Walter Mignolo) o texto objetiva contribuir
para o debate antropológico acerca das mais variadas formas de resistências sustentadas
pela pluralidade histórica e de luta partilhada para a defesa do território.
Palavras-chave: quilombo-indígena, resistência, território, Tiririca dos Crioulos
Resumen
A partir de la descripción etnográfica, este
artículo se enfoca en el proceso histórico y político de formación de la
comunidad rural Tiririca dos Crioulos, autoidentificada
quilombola-indígena, y situada en el Sertão pernambucano de São Francisco
(nordeste brasileño). Desde el punto de vista jurídico, la Constitución de 1988
define las categorías identitarias indígenas y quilombolas en sujetos de
derecho distintos. Sin embargo, en términos empíricos, resulta evidente que,
como propone Aníbal Quijano, las formas de resistencia a la colonialidad del
poder son más amplias y complejas; resultan en heterodoxias desafíantes al
Estado colonial brasileño y confrontan los poderes locales. Pensar en quilombo
indígena como categoria local resistencia significa cuestionar las categorías
jurídico-políticas coloniales, al mismo tiempo se constituye en un desafío para
la formulación de políticas públicas y para el reconocimiento territorial. Apoyados
en Frantz Fanon y en las teorías decoloniales (Arturo Escobar; Rita Segato; Walter Mignolo), este texto tiene por
objetivo contribuir al debate antropológico sobre las diversas formas de
resistencia sustentadas en la pluralidad histórica y de lucha compartida para
la defensa del territorio.
Palabras claves: Quilombo-indígena, resistencia, territorio, Tiririca dos Crioulos
Abstract
This paper aims to present, from the ethnographic
description, the historical and political process of constitution of a rural
black community, the Tiririca dos Crioulos, which self-identifies as an
'indigenous quilombo', in the “sertão” of São Francisco in Pernambuco State
(Northeast Brazil). From a legal point of view, the 1988 Constitution
recognizes indigenous and quilombola identity as categories of subjects with
distinguishing rights. However, empirical reality shows that the forms of
resistance facing the coloniality of power, as proposed by Aníbal Quijano, are
much broader and more complex; it results in heterodoxies that challenge the
Brazilian colonial state, and confront local powers. Thinking indigenous
quilombos as a local category of resistance implies questioning colonial
legal-political categories and unfolds the State's challenges to formulate
public policies, including territorial recognition. From this specific case,
based on Frantz Fanon and decolonial theories (Arturo Escobar; Rita Segato;
Walter Mignolo), the text aims to contribute to the anthropological debate
about the most varied forms of resistance. Moreover, they are supported by the
historical plurality and the shared struggle for the defense of the territory.
Key words: Indigenous
quilombo, resistance, territory, Tiririca dos Crioulos
Introdução
A Tiririca dos Crioulos é
uma comunidade rural do sertão do rio São Francisco pernambucano, município de
Carnaubeira da Penha, constituída por 49 famílias. No ano de 2010, a comunidade
passa a se autoidentificar como um ‘quilombo-indígena’, no contexto da luta Pankará,
seus vizinhos e parentes, pela regularização da Terra Indígena (TI) denominada
Serra do Arapuá. Surpreendem os poderes locais, as agências estatais e seus
aliados históricos com a criação da classificação identitária heterodoxa. São
quilombolas? São indígenas? A resposta dada por Verinha, liderança e professora
da comunidade, explica a categoria atribuída à comunidade: “é um negro com
traço de índio, é um índio com traço de negro, essa é a relação. Depois de
tanto o povo perguntar, eu resumi assim: somos um quilombo-indígena e ficou”[1].
A síntese pragmática à
questão da Tiririca é na realidade a expressão de uma insurgência político-epistêmica
calcada na resistência cotidiana ao longo de todo o século XX chegando aos dias
atuais. Em grande medida, a mobilização junto aos Pankará é engendrada como
estratégia de defesa coletiva perante o contínuo processo de racismo atravessador
da história desses grupos étnicos na Serra do Arapuá. Com efeito, se destacam
os sucessivos esbulhos de terras praticados secularmente pelos fazendeiros da
região. A racialização da diferença, neste contexto, é uma distinção colonial
bem precisa de negros e indígenas em relação à oligarquia regional.
Nossa inserção no sertão do
São Francisco ocorre em fins da década de noventa por meio do trabalho indigenista
de assessoria às reivindicações territoriais dos povos da região e na formação
de professores/as indígenas[2]. Embora
familiarizados com essa complexidade de atores, grupos sociais e agências presentes
na região, conhecemos a comunidade Tiririca dos Crioulos no ano de 2010 durante
o processo de regularização da Terra Indígena Pankará.
O povo Pankará havia, desde
a década de 1940, reivindicado a regularização jurídica do seu território, a Serra
do Arapuá, ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista do Estado
brasileiro à época. O que os Pankará não contavam era com a demora da
regularização, que só veio a ser atendida em 2009, ano da criação do Grupo
Técnico para Estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (GT)
instituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai)[3].
Na ocasião atuávamos diretamente no processo por duas vias: a oficial, enquanto
antropóloga-coordenadora do GT, e no controle social como assessor jurídico do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nossa incursão no campo ocorreu entre
os anos de 2010 e 2013 e o período deste trabalho correspondeu, também, à
pesquisa de doutoramento de uma das autoras do presente texto[4].
O tempo de militância ao
lado dos Pankará nos levou a uma hipótese descartada: o processo ocorreria sem
muitas surpresas, ao menos do ponto de vista das dinâmicas sociopolíticas do
povo. Durante a discussão dos limites da Terra Indígena com representantes de
todas as aldeias situadas na área reivindicada, uma circunstância peculiar
surge demandando a reorganização metodológica do GT.
Um prólogo da situação social, geradora do deslocamento
de nossa compreensão acerca do campo empírico, pode ser contado no encontro com
duas comunidades: a comunidade do Massapê e a comunidade da Tiririca dos
Crioulos, ambas detentoras de histórias singulares na Serra do Arapuá. Até
aquele momento, tais grupos não estavam articulados politicamente à organização
indígena para discussão da regularização territorial. No entanto, era do nosso
conhecimento a certificação das duas comunidades pela Fundação Cultural
Palmares[5]
como ‘Comunidades Remanescentes de Quilombos’[6].
Diante disso, iniciamos a pesquisa etnográfica com as situações descritas brevemente
nesta introdução.
Primeiro vamos nos deter à comunidade do
Massapê. O Grupo Técnico se dirigiu à reunião agendada sabendo que iria tratar
de uma comunidade quilombola em função do processo administrativo de
levantamento fundiário em curso pelo Instituo Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra)[7].
O encontro seria um entendimento prévio da situação jurídica para encaminhar a
discussão das fronteiras territoriais. Logo no início da reunião, contudo, a
comunidade se autodeclara pertencente ao povo indígena Pankará. Reclamam seu
pertencimento de “filhos da Serra do Arapuá”, descendentes dos membros
fundadores da comunidade, migrantes do alto da Serra (aldeia Gonzaga) para o sertão
(denominação local para as regiões baixas da Serra) na primeira metade do
século XX. Mobilizam o discurso do parentesco ao afirmar pertencimento às
famílias Limeira e Caxiado. Os pajés Pedro Limeira e Manoelzinho Caxiado,
importantes lideranças político-religiosas presentes na reunião, reiteraram a
posição da comunidade do Massapê. O desfecho foi a deliberação conjunta da
suspensão da certificação de quilombola e a inclusão da área do Massapê na Terra
Indígena Pankará.
Em relação ao encontro com a comunidade
Tiririca dos Crioulos, chamou a nossa atenção não haver demanda formalizada ao
Incra para a regularização do território, o que não era esperado por se tratar de
uma comunidade com nível consistente de informação, sugerindo ao GT algum interesse
em resolver a situação jurídica de sua posse via Terra Indígena. Por
conseguinte, o povo Pankará indicava a comunidade pertencente à sua organização
social; os argumentos para tal assentavam-se na relação de parentesco e no uso
comum de espaços considerados sagrados. Ocorre que os critérios apresentados
por lideranças Tiririca conduziram à recusa da inclusão de sua área territorial
no perímetro da Terra Indígena durante a consulta pública. Compartilhar de uma
mesma territorialidade não se confirmou como critério preponderante; no
pensamento das lideranças, a “terra dos crioulos” abrange uma história dupla, repleta
de memórias da resistência negra na localidade; portanto, quilombola. Desse
modo, as lideranças Pankará e Tiririca encaminham conjuntamente um pedido
oficial ao Incra para abertura do processo de regularização das terras da
comunidade na categoria ‘remanescentes de quilombos’.
Apoiados na
antropologia brasileira das populações indígenas e quilombolas – com enfoque
analítico articulador das categorias território, história, resistência –, e na
perspectiva teórica da colonialidade do poder, formulada pelo sociólogo peruano
Aníbal Quijano, o presente texto debruça-se sobre as relações entre indígenas e
quilombolas na Serra do Arapuá. Buscamos entender, na formação
social do quilombo-indígena, como esses atores mobilizam seu capital histórico/simbólico
para, a partir das suas lutas, modificar a realidade de exclusão racial imposta
por determinadas instituições sociais.
A pesquisa etnográfica na
qual baseamos este artigo demonstrará que a criação de uma categoria
identitária heterodoxa, além de representar uma aprendizagem contra- hegemônica ̶ no sentido dado por Juan García “
desaprender lo aprendido para volver a aprender”[8] ̶ , questiona os processos
de construção da diferença operados nas vias legais de um Estado monista. Atinente
a esta alteridade do quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos, existe uma
crítica a colonialidade exercida pelo direito estatal na criação de
classificações estanques e a sua incapacidade de promover políticas públicas e
direitos territoriais para territorialidades específicas.
Para
abrir o diálogo antropológico, o artigo inicia com uma breve caracterização da
Serra do Arapuá, e dos grupos étnicos originários desse território tradicional.
Em seguida, é abordado o histórico de ocupação da comunidade Tiririca, com foco
nas lutas empreendidas na
defesa do território, e igualmente nos processos decisórios das
comunidades indígena e quilombola acerca das fronteiras territoriais. A conclusão problematiza os desafios para o
reconhecimento de novas territorialidades plurais no contexto do Estado
brasileiro.
A comunidade Tiririca dos Crioulos, os
Pankará, a Serra do Arapuá
A Tiririca dos Crioulos está situada ao “pé”
da Serra do Arapuá, Terra Indígena Pankará, circunvizinha a duas aldeias
indígenas: aldeia Riacho do Olho D’água (ao norte), aldeia Olho D’água do Muniz
(a leste). À vista do nome das aldeias, a Serra do Arapuá é citada em
documentos históricos como um “oásis no Sertão”[9].
Possui uma altitude aproximada de 900 metros compondo o conjunto dos principais
brejos de altitude no estado de Pernambuco. Daí o grande valor econômico e
ambiental, tornando-se área de disputas fundiárias. Os brejos de altitude são
ilhas de floresta úmida, encraves da Mata Atlântica nordestina em pleno semiárido[10].
A população da Tiririca é de 196 pessoas
organizadas em 49 famílias nucleares, de acordo com o censo demográfico de 2013
- realizado por ocasião dos estudos de identificação e delimitação do
território remanescente de quilombos. As famílias nucleares e as extensas agrupam-se
no entorno da residência de um ancião/anciã formando cinco localidades
espacialmente distribuídas ao longo da estrada principal do quilombo. A área
total identificada pelo GT/Incra é de 2.136 hectares[11]. O
levantamento fundiário concluído em 2013 identificou a ocorrência de um imóvel
de ocupante
não quilombola. Trata-se de uma fazenda de médio porte detentora do único açude
de água da localidade. Registrada em cartório no nome de uma das ditas
“famílias tradicionais” do município de Floresta, a fazenda representa um
encalço para as comunidades cujo tema abordaremos adiante.
Já a população Pankará, indicada no último
censo feito pela organização das professoras indígenas no ano de 2010, soma
4.870 pessoas distribuídas em 53 aldeias situadas nas três regiões da Serra do
Arapuá (sertão ou “pé” de serra, agreste e chapada). A comunidade Tiririca está
incluída no referido censo, pois como iremos explorar neste artigo, a Serra do
Arapuá, no entendimento dos indígenas e quilombolas, é um território
compartilhado, concepção divergente da sua condição jurídica de Terra Indígena
e Terra de Remanescentes de Quilombo.
No tocante à organização da comunidade
Tiririca dos Crioulos, há uma trajetória de mobilização interna e com o entorno,
desde a época das primeiras famílias fundadoras do quilombo. Para a compreensão
das lutas mais contemporâneas, evidenciamos a importância da década de oitenta para
a politização da comunidade. Período das mobilizações pela redemocratização do
país, lideranças da Tiririca ensejam articulações orgânicas com movimentos
sociais, sindicatos de trabalhadores/trabalhadoras rurais e grupos da Teologia
da Libertação (pastorais da Igreja Católica). Esse campo de relações
possibilitou às lideranças o conhecimento da emergência étnica de várias
comunidades quilombolas na região do entorno, especificamente ao final dos anos
noventa. Essas comunidades integram uma rede de sociabilidade com a Tiririca na
economia, nos festejos, nas relações de parentesco, entre outros aspectos da
vida social. Identificam assim semelhanças consoantes à caracterização social,
histórica e cultural respaldada no artigo 68-ADCT da Constituição Federal de
1988, levando-os a autodeclararem-se quilombolas nos termos da categoria
jurídico-política instaurada pelo Estado.
No ano de 1998 é criada a Associação dos
Remanescentes do Quilombo da Tiririca dos Crioulos, o que lhes garante o
acesso a informações sobre direitos territoriais e políticas públicas junto ao
movimento quilombola. Seguindo os passos do reconhecimento estatal, acionam a
Fundação Cultural Palmares e adquirem o título de ‘Comunidade Remanescentes de
Quilombos’ em 2008’[12].
A titulação representou um reconhecimento do Estado à identidade quilombola, mas,
por outro lado, sem repercussões administrativas para a regularização
territorial, em razão de ser responsabilidade de outro órgão, no caso o Incra.
A mobilização conjunta, Tiririca - Pankará, visando
a instauração do procedimento administrativo em relação ao território, só veio
a ocorrer na chegada da Funai à região, no ano de 2010, para deflagrar o
processo de regularização da Terra Indígena Pankará. Por serem áreas contíguas,
havia uma preocupação relativa à presença dos fazendeiros nas áreas de
fronteira entre as duas comunidades com a manutenção das relações de violência
e patronagem. O Incra instaura o Grupo Técnico para estudos de caracterização,
identificação e delimitação do território quilombola Tiririca dos Crioulos no
ano de 2012, tema detalhado adiante.
Depois de mais de meio século de resistência
na Serra do Arapuá, encobertos como trabalhadores rurais, o povo Pankará obteve
o reconhecimento do Estado brasileiro. A Serra do Arapuá dá nome à Terra
Indígena identificada oficialmente[13] em
15 mil hectares. A delimitação oficial englobou as três microrregiões
imprescindíveis para a reprodução física, cultural e ambiental. São elas: região
baixa, caracterizada pela vegetação caatinga, denominada localmente de sertão ou
“pé” de serra; a região intermediária é denominada de agreste e o platô
denominado de chapada. As duas últimas de clima frio e úmido, com nascentes de
água. O levantamento fundiário feito em 2016 (GT/Funai) identificou a
ocorrência de 106 imóveis de ocupantes não-indígenas incidentes na TI
Pankará da Serra do Arapuá.
Conforme analisado em trabalho anterior[14], a
presença não-indígena é procedente de um modo de ocupação específico dessa
região baseado na divisão de terras em lotes familiares. O acúmulo de poder e
prestígio das famílias ditas proprietárias estava condicionado tanto na
concentração de lotes desmembrados entre herdeiros, quanto no número de
escravizados/as. No exame minucioso do levantamento fundiário, constatamos a
vigência de tal padrão de ocupação além de observados outros modos agregados ao
longo dos anos.
Nesse cenário de franca presença
contraditória à ocupação tradicional, o risco de morte das lideranças pela
demarcação territorial se torna inerente o projeto de autonomia do povo se
apresenta vulnerável. Os agentes da oposição aos Pankará integram, em primeiro
plano, as famílias radicadas secularmente nos principais postos dos poderes
Executivo (municipal), Legislativo (nas três esferas) e, em segundo plano, as
famílias de posseiros subordinadas às primeiras. Nem todos os membros da elite
fixaram residência na Serra, embora todos exerçam o controle sobre os Pankará e
a Tiririca via relações patronais, especialmente arrendamento; as segundas não
possuem poder econômico significativo: habitam na Serra como caseiros, com a posse
de pequenas áreas e do matrimônio com os/as indígenas.
A constituição dessa malha fundiária se
estabelece como própria metodologia de hostilidade perpetrada contra indígenas
e negros; extrapola as relações na Serra. O racismo instituído vincula-se às
relações com o município de Carnaubeira da Penha, direcionando o fluxo de comércio
e serviços dos moradores da Serra para a cidade de Floresta. Todavia, dentro de
um quadro histórico mais amplo, o município de Floresta, cuja fundação tem
início no século XVIII, é o ponto de partida para a análise da geopolítica responsável
pelo aparato político-administrativo do esbulho das terras indígenas e a
escravização da população negra. As frações das elites agrárias espraiam-se para
os municípios do entorno, como projeto de poder, e exercem influência no
contexto regional, não somente em Carnaubeira da Penha.
Carnaubeira é citada nas fontes históricas
dos séculos XVIII e XIX como o antigo “Sítio da Penha”, área doada aos índios
Umãs pelo rei de Portugal ̶ objeto
de disputa entre indígenas e a Câmara Legislativa de Floresta[15]. Foi
distrito do município de Floresta até ser elevada a município autônomo no ano
de 1991. Em termos demográficos, a população é de 11.782 indivíduos e o
contingente mais expressivo está na zona rural, totalizando 9.800 pessoas,
segundo último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2010). Trata-se de um município composto majoritariamente de indígenas e
quilombolas, no qual os povos Atikum (Serra do Umã), Pankará (Serra do Arapuá) e
o quilombo Tiririca somam, aproximadamente, 9.600 pessoas, ou seja, mais de 80%
da população municipal[16].
No
panorama socioeconômico, Carnaubeira da Penha representa uma das principais
zonas produtoras do chamado “polígono da maconha” no sertão de Pernambuco.
Subtende-se a presença de violência armada: seja por policiais militares, seja
por traficantes. Apesar deste aspecto ser importante para situar os tipos de
violências presentes no campo empírico, Carnaubeira, antes de tudo, foi reduto
do mandonismo[17],
da violência física e simbólica, da exploração da terra e das pessoas. Estes
são alguns conceitos qualificadores do padrão de poder
colonial/capitalista/eurocêntrico vigente nos sertões nordestinos.
O encontro entre indígenas e negros no sertão
do São Francisco acontece, como é possível deduzir, nessas tramas da história.
O rio São Francisco e a vastidão de terras sertanejas atraíram uma frente
expressiva de colonização originando um contexto intersocietário diverso. Foi o
período da fixação das famílias descendentes da Casa da Torre acompanhadas de
novos colonos, ambos favorecidos pela Lei de Terras (Lei nº 601 de 18 de
setembro de 1850), a lei responsável pelo confisco das terras indígenas. A
população negra chegou à região escravizada para trabalhar nas fazendas de gado.
Ao olhar de historiadores debruçados sobre os inventários das famílias
abastadas, havia um contingente majoritário de proprietários de escravos[18].
No Censo Imperial de 1872, a respeito destas paragens
do São Francisco, há a descrição dos tipos de atividades exercidas de forma
predominante pela população escravizada: agricultura, serviços domésticos,
trabalhos de fiandeira, vaqueiro, curtidor de couro[19]. Evidenciamos
esse dado a fim de destacar a particularidade dos mecanismos de controle e
coerção praticados na região, uma vez que a organização do trabalho diferia
totalmente daquele aplicado na plantation dependente de trabalhadores
vigiados. No Sertão, a reprodução das relações de dominação para manutenção da
servidão fora forjada no deslocamento da força de trabalho ao âmbito das
relações domésticas, ou seja, na sujeição da subjetividade.
Comunidades negras rurais começaram a se
formar, na condição de libertas juridicamente, nas últimas décadas do século
XIX, decorrente do Fundo de Emancipação, empregado entre 1872 e 1888. Estabeleceram-se
no entorno das propriedades de seus antigos donos assegurando a manutenção de
uma rede de sociabilidade movimentada em virtude dos “batizados, casamentos
e festejos cristãos permitidos por seus proprietários, e pela convergência
entre a demanda de trabalho oferecida e o tipo de ofício que a própria
escravidão os imputou: vaqueiros, agricultores, trabalhadoras domésticas”[20].
Ainda de acordo com a historiografia desse período, negros, indígenas,
camponeses e pobres mantiveram-se trabalhando nas fazendas da região cooperando
entre si na compra ou posse de pequenos lotes de terra para uma vida mais
autônoma no campesinato.
Apesar da presença indígena
e negra ser maior demograficamente no município de Carnaubeira, atualmente,
naquilo que reflete as relações de poder essa maioria populacional ainda não
coloca estas populações em vantagem. Os poderes Executivo e Legislativo de
Carnaubeira da Penha e Floresta são comandados pela elite agrária local, a
contar da época colonial. Um estudo de doutoramento sobre a trajetória social
de proprietários de terras em Floresta esclarece, por meio de dados coletados
em documentos judiciais e cartoriais dos séculos XVIII e XIX, a assunção dos
membros das ditas “famílias tradicionais” em “categoria socialmente
dominante e como membros ativos da burocracia administrativa local”[21].
Se analisarmos esse padrão de poder a partir de Frantz Fanon[22],
não é, senão, uma modalidade da divisão em compartimentos do mundo colonial.
Vejamos
O perfil dos componentes das Câmaras
Municipais, desde a sua instituição, é caracterizado pela presença maciça de
co-proprietários de terras, de co-senhores de escravos e criadores de gado.
Acompanhando-se pelos nomes de seus membros, alguns se revezando, pelas
alianças estabelecidas, constatamos que estava presente todo o segmento de «
homens bons » da localidade, pertencentes às famílias tradicionais. Dos dezoito
vereadores, nas três legislaturas, a maioria tinha algum grau de parentesco ou
amizade e/ou assumiu na Câmara por mais de uma vez, potencializando, assim, a
influência dos grandes proprietários e seus descendentes[23].
Por conseguinte, identidades históricas foram
produzidas nesse Sertão, e à base de uma ideia de raça foram associadas à
natureza dos papeis e dos lugares da nova estrutura de controle da terra e do
trabalho. Na conceção de Aníbal Quijano, “raça e divisão do trabalho foram
estruturalmente associados e reforçaram-se mutuamente, apesar de que nenhum dos
dois era, necessariamente, dependente do outro para existir ou para mudar”[24]. Na
esteira da invenção eurocêntrica das ditas “famílias tradicionais” funda-se a
violência social: a imposição de um colonialismo regional urdido há séculos. Afinal,
a destruição de um mundo histórico, a partir da classificação racial, não seria
imaginável fora da violência da dominação colonial[25].
A teoria
da colonialidade do poder, então, nos possibilita um entendimento das relações
de dominação constitutivas do contexto intersocietário em análise, igualmente das
formas de resistências engendradas por indígenas e quilombolas para a
composição de alianças políticas, religiosas e de parentesco. Um padrão de
resistência “na qual o poder está na comunidade e não no Estado ou em
qualquer outra instituição administrativa equivalente” conforme analisa
Walter Mignolo sobre a “identidade na política”, ao invés das discussões que
partem das “políticas de identidade” [26]. Interessa-nos esse tipo de resistência no
lugar[27], capaz
de reconfigurar as identidades sociais e produzir novas pluralidades históricas
no sertão do São Francisco, tal qual se presencia na emergência do
quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos.
Olha, tinha dois lugares
aqui em Carnaubeira da
Penha tido como o inferno,
terra de satanás: Massapê e Tiririca.
Esses dois lugares, quando se falava, tinha
uma diferença(...)
uma diferença que a gente
sente...
Os negros da Tiririca eram
os discriminados[28].
A formação social da comunidade é narrada em dois
momentos históricos, o tempo de Pinto Madeira e Helena seguido do tempo de
Manoel Miguel e Izaura. Desde o início desta pesquisa, temos acompanhado
lideranças mais jovens e professoras da comunidade na articulação dos
anciãos/anciãs em busca da reconstrução do passado, do reavivamento das
memórias coletivas:
A comunidade é muito antiga e os mais novos
se perderam nessa história. Eu estou tentando historiar por aí na vila... aqui
fazendo essa pesquisa com os mais velhos para entender bem direitinho a luta
deles, porque assim, se não pesquisa se perde. Tem muitas coisas importantes a
saber[29].
Durante a incursão etnográfica no
quilombo-indígena, entre 2010 e 2013, foi valioso o apoio das lideranças Roberto
e Verinha na interlocução da pesquisa. São irmãos, filhos de Manoel Miguel
Pankará e Izaura da Tiririca, netos de Pedro Canuto; ambos representam o
quilombo-indígena no Conselho de Lideranças da Organização Social Pankará. São
as lideranças indicadas pela comunidade para estarem à frente da articulação
política com o Estado brasileiro nos assuntos de interesse comunitário. As
relações de confiança e parceria estabelecidas em campo contribuíram para qualificar
nossa escuta etnográfica e compreensão da realidade empírica. Além das
entrevistas, conversas nos terreiros das casas, caminhando entre as veredas que
ligam o território, os dados etnográficos foram acessados durante oficinas de
história oral e outra de mapeamento participativo envolvendo toda a comunidade[30].
Por intermédio das narrativas dos/das mais
velhos/as identificou-se quatro personagens centrais na composição da história
de origem da Tiririca: Pinto Madeira (também pronunciado Plínio Madeira),
Helena, Pedro Canuto e Izaura. Contudo, havendo algumas incertezas quanto ao
Pinto Madeira e Helena: quem eram exatamente, se negros ou donos de terra.
Pedro Canuto é um personagem conhecido, negro liberto, chegou à Tiririca
provavelmente nos primeiros anos do século XX. Era o pai de Izaura, a jovem
negra que estabeleceu laços de matrimônio com o índio Pankará Manoel Miguel. Conhecido
por “Marinheiro”, Manoel Miguel chega à Tiririca na década de quarenta levando
adiante sua liderança político-religiosa na comunidade até a sua morte, em
1998. Esse casamento é marco simbólico na atual aliança Pankará e Tiririca.
Repuxar os fios da ancestralidade nas
oficinas implicou em desafios metodológicos para lidar com as subjetividades. Retomar
uma historicidade ocultada pela colonialidade afetou os sentimentos do grupo. Sabemos
que para a etnografia não importa, objetivamente, a identidade de Pinto Madeira
e Helena; o aspecto relevante reside na mobilização da memória e na produção de
narrativas geradoras dos vínculos de afinidade. Posto isso, vamos apresentar,
de forma sucinta, as versões mais recorrentes da origem do quilombo-indígena.
Uma narrativa menciona a chegada de Pinto
Madeira e Helena à Tiririca, os primeiros moradores. Nessa versão, a comunidade
não consegue precisar qual tipo de vínculo os ligavam, mas compartilham a
memória de serem os responsáveis pelo registro da terra no único cartório da
região, situado na cidade de Flores. Chegaram ao local porque na região de
Mirandiba, município vizinho, existiam “pastos bons”. Posteriormente, as
terras foram doadas ao Pedro Canuto e herdada por sua filha, Izaura. Quando o
índio Manoel Miguel, este se casa com Izaura e juntos assentam moradia na
Tiririca porque “os negros da Tiririca possuíam essa terra, enquanto a Serra
do Arapuá já estava dominada pelos brancos”[31].
Na segunda versão Pedro Canuto é o epítome
descrito como vaqueiro de Pinto Madeira. Migrou do estado do Ceará, região de
Porteiras, chegando na Tiririca em fins do século XIX para adquirir as terras,
mediante compra. O episódio seguinte de sua vida reporta ao casamento com uma
índia da Serra do Arapuá, retratando o início de uma genealogia de casamentos
entre as duas comunidades. Dentre os filhos e filhas desta aliança matrimonial,
destaca-se Izaura. Ela veio a tornar-se mulher do índio Manoel Miguel, da Serra
do Arapuá, na década de quarenta.
Historiar os processos de territorialização provocou
na comunidade uma necessidade de consensos estratégicos sobre a retomada do
território, pois a despeito da origem de Pedro Canuto, transigem no fato de a
terra da Tiririca ter sido documentada no cartório de Flores em favor deste e de
seus descendentes. A crença na origem comum em Pedro Canuto e Izaura reflete na
crença de um território de herança para usufruto coletivo
A história que a gente sabe é que isso aqui
era deles. Era registrada a posse dessa terra. Tem um documento no nome deles,
como eles conseguiram, não sei. Papai teve acesso a esse documento. Como já
tinha as suas atividades para cuidar, nunca se interessou para ficar com a
guarda desse documento. Agora é registrado, a terra é de todos. Provavelmente
alguma pessoa que não mora na Tiririca ficou com ele. Acho que não deu
importância, mas esse documento era do tempo que aqui pertencia a Flores, esse
documento foi registrado[32].
A contar da origem do quilombo até os
principais momentos de luta pela terra, há recorrência de ações de má-fé dos
fazendeiros da região. Consoante aos relatos, famílias abastadas se apossaram
de parte do território “passando a cerca nas terras dos crioulos”[33]. O
esbulho gradativo levou aos enfrentamentos, na década de quarenta, compondo um
mosaico de conflitos diretos, intermitentes
Aqui teve uns problemas pesados para nós.
Terra de preto e índio ninguém respeita. Foram cercando, cercando e nós
tentando segurar. Eles sabiam que tínhamos documento e por isso não avançaram
mais. A gente escuta sobre virem tentando alcançar essa terra lá, quando chegou
lá nesse local o cara olhou e disse: não, o documento do “neguim” é bem feito. Por
isso a gente sabe do documento, mas se perdeu, nossa geração ninguém viu. Dizem
que está no cartório lá de Flores[34].
A época das primeiras pilhagens das terras da
comunidade corresponde com a chegada do Pankará Manoel Miguel na Tiririca, cuja
presença desvenda variados episódios da vida do grupo em razão de sua liderança.
Manoel Miguel era membro de uma família ligada aos rituais na Serra do Arapuá, detentora
do saber da medicina tradicional. Dizem que os Miguel prestavam atendimento em
toda a região quando solicitados e, ao lado de seu irmão, Antônio Miguel[35],
fez-se presente nos processos de reconhecimento étnico dos seus vizinhos Atikum
por ser grande conhecedor do Toré[36].
Ao passar do tempo, diferenciou-se dos seus parentes indígenas porque “começou
a trabalhar com mesa alta e o Toré é da Jurema, a Jurema é do chão”[37]. Esse
tipo de saber conduziu a uma vida de grande mobilidade explicando em certa
medida o casamento de Manoel Miguel e mais dois irmãos com mulheres da Tiririca.
É necessário focarmos na história do casal Manoel
Miguel e Izaura, à luz das relações políticas, rituais e econômicas na Serra do
Arapuá, e nas resultantes desse casamento nos dias de hoje. Tão logo se casaram,
Manoel Miguel comprou um lote de terra contíguo ao território original da
Tiririca ampliando o espaço de uso coletivo. Construiu a primeira casa de
alvenaria na comunidade denominada de ‘Casa Grande’; após a sua morte, foi
destinada ao uso comunitário para reuniões e cultos da Gira
Meu pai nos ensinou que é melhor todos terem
pouco, do que um com muito e outros sem nada. A lição de Marinheiro para nós
foi a partilha. Desde pequenos, lá em casa, se aprendeu a dividir com todos. E
assim papai fez na vida dele também. A terra que ele comprou é da comunidade e
a casa dele de tijolo, esse sempre foi um desejo, ele pediu para nenhum filho
morar, porque a casa era grande e deveria servir a todo mundo e assim nós
fizemos[38].
Aqui na Tiririca a gente nunca teve essa
tradição de linha, os linheiro como chamam. A linha é assim: cada um tem seu
pedaço de terra. Aqui não, eu planto aqui, planto do outro lado, planto em todo
canto. Todo mundo planta em todo canto. Um vizinho conversa com outro e se
ajuda. Isso é uma diferença nossa[39].
Em contraste às concepções e práticas relatadas
acima, fazendeiros da região não desistiram de investir na imposição da
propriedade privada. Utilizaram de artimanhas perversas contra a moral da
comunidade acusando-os de “ladrões de bois” para exigir lotes de terra como
pagamento pelo roubo inexistente. Em um contexto de violência intumescida, a
memória denuncia: “Nós sabemos que éramos vistos dessa qualidade inferior
porque assim contam os mais velhos[40].
Relações menos hostis sobrevieram por intermédio de Marinheiro à custa da
posição de “homem da ciência indígena”, conhecedor da medicina tradicional. Não
obstante, a condição inventada pelo racismo de “inferior” foi o argumento legitimador
das várias tentativas de esbulho do território da Tiririca, várias delas com
sucesso. A denúncia das reduções de área territorial do quilombo é atestada,
também, pelas lideranças Pankará em conversas durante a pesquisa de campo
A luta do povo da Tiririca foi grande mesmo.
No tempo de Manoel Miguel teve um conflito por conta das fronteiras de terra
lá. Os brancos vão andando as cercas deles e teve uma hora que o povo da
Tiririca se organizou, quase deu um conflito feio. É que o velho Manoel Miguel
soube lidar com o problema. Mas a gente sabe mesmo, a Tiririca perdeu terra
para os brancos[41].
O uso de expressões derrogatórias contra a
comunidade qualificou o padrão para angariar terras ilegalmente sob a
justificativa de estarem fazendo justiça: “eu cresci vendo e ouvindo o povo
menosprezar o pessoal da Tiririca, como negros acanalhados, negros fedorentos,
negros do pé rachado, negros do beição de aribé, entendeu? Aí essa coisa ficou
impregnada”[42].
Conteúdos constrangedores semelhantes a esses emergiram nas oficinas de
história oral ao mesmo tempo que possibilitou a ressignificação do racismo.
Após análises coletivas, a comunidade compreendeu o uso de má-fé inerente a
todos os ataques ao seu território. Cabe recordar uma análise de Fanon[43]:
“de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem
zoológica”.
A usurpação avançou posteriormente em conjunturas
de extrema carência econômica de algumas famílias, ocasionada por estiagens, pragas
na lavoura, epidemias, entre outros problemas comuns às áreas pobres, levando à
necessidade da venda de frações da terra. Diante dessas situações, os adquirentes
cercavam uma área maior em relação ao lote negociado
Naquele tempo era muito difícil, porque não
tinha esse negócio de projeto, de financiamento, se vivia com o que podia. Se deus
ajudasse e chovesse era bom, se não era ruim. Os pais de família tinham que
vender um pedacinho do terreno para comprar uma semente, um bicho, uma coisa.
Só que os fazendeiros passavam a cerca maior, entendeu agora?[44]
Depreende-se dos depoimentos, da nossa escuta
e convivência com essa comunidade a manutenção de um vínculo histórico balizado
em saberes territoriais opostos à lógica instrumental. Ou seja, a luta
deflagrada para reconquista das áreas pilhadas e garantia jurídica da posse
coletiva é operada na racionalidade histórica. Com efeito, parece justificar as
intencionalidades tangentes aos processos decisórios comunitários que motivaram
a deliberação por um ordenamento jurídico à parte da constituição como Terra
Indígena.
Processos decisórios comunitários e o marco
jurídico da terra como Remanescentes de Quilombos
A Tiririca tem origem na resistência dos
negros,
dos descendentes de Izaura e Pedro Canuto que
chegaram
aqui nessas terras e trabalharam muito. Depois
os índios
chegaram, casaram, se misturaram aqui. Por
isso eu digo,
a Serra é dos caboclos e a Tiririca é dos
crioulos[45].
A memória coletiva da resistência negra é o
ponto de partida para compreender por que, durante os trabalhos da Funai para
definição dos limites da Terra Indígena, os tiririqueiros tenham afirmado “a
Serra é dos caboclos e a Tiririca é dos crioulos”. De um ponto de vista
instrumentalista da identidade étnica, seria mais viável a comunidade decidir-se
integrar à Terra Indígena, cujo procedimento já estava em curso aliado ao
consentimento das lideranças Pankará, se essa fosse a decisão. Cabe lembrar que
no ano de 2010 sequer haviam encaminhado solicitação ao Incra para a abertura
de processo. Ou seja, “estava à mão” a possibilidade de garantir o direito
territorial pela via da política indigenista, e isso não seria obtuso, visto
que os tiririqueiros estão dentro dos critérios de pertença do povo Pankará. No
entanto, alegaram o seguinte
Aqui
nós somos Pankará também, é verdade. Tem os filhos de Manoel Miguel. Mas a
Tiririca é herança dos negros, de Pedro Canuto e Izaura. Os índios é que foram
abrigados na terra dos negros. Por isso, não é correto dizer que essa terra é
indígena, porque ela vem da resistência dos negros, por isso é Tiririca dos
Crioulos[46].
O argumento das lideranças da Tiririca sugere
uma agenda política própria sem ceder à pressão da conjuntura instalada pelo
órgão indigenista ao tempo que, habilmente, lançam mão das dinâmicas intrínsecas
a sua etnicidade. Sob ponto de vista similar, Isabel Castro Henriques[47]
alude à indissociabilidade entre história e território quando tratamos dos
grupos étnicos, expressa “não só na presença dos espíritos dos antepassados,
mas pela acumulação de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e
reinterpretados pelos homens, os outros provindo do imaginário do indivíduo e
da sua sociedade”[48].
Diante da inexistência de uma possibilidade jurídica de território que acolha
a especificidade da Tiririca, optam pelo marco legal mais próximo “simbolicamente”
do seu passado de resistência às violências perpetradas contra o grupo por
serem negros
Era estranho, eu ficava pensando, porque tem
muita gente negra aqui no entorno da Tiririca, e com a Tiririca era diferente,
não sei se naquele tempo a Tiririca já tinha o ritual, alguma coisa assim. Os
negros da Tiririca é que eram os discriminados. No tempo antigo não tinha esse
negócio de cristianismo, ninguém levava os filhos para batizar, tinha essa
discriminação também, porque diziam que a Tiririca era terra de animal bruto.
Diziam que o pessoal daqui não tinha deus porque não batizava os filhos. Ir
para missa só dos anos 1920 para cá. Nos anos 1940, Marinheiro levou a cultura
do Toré para a Tiririca e o povo do Toré se reconhecia como caboclo, porque
naquele tempo era caboclo que chamava, não era índio. Marinheiro começou o
Toré, e isso socializou o povo da Tiririca, veio esse nome de caboclo: “eu sou
caboclo aqui de Marinheiro” para amenizar essa história de se chamar de negro[49].
Nesse enredo sobre o Toré, reiteram a importância
da aliança com indígenas para a continuidade da comunidade e mitigação da
convivência forçada ao racismo local/regional. Mas, no depoimento a seguir, vimos
o quanto é tangível o protagonismo de seus ancestrais negros na formação social
da comunidade. Inclusive, ao lançarem mão deste fato histórico, resguardam a
possibilidade de um autogoverno na gestão territorial da área jurisdicionada à
Tiririca
Quando meu pai chegou aqui na Tiririca, já
tinha muitos anos que a comunidade Tiririca tinha se formado. Esse povo negro
chegou, trabalhou, resistiu aqui. Depois veio papai em 1940. Então é um
território de negro e de índio. Os primeiros que formaram a Tiririca foram os
negros, isso a gente não pode mentir. A gente aqui compreende assim, na questão
da terra é quilombola, mas na organização, na união, nos rituais, somos um povo
só. Porque a gente vive igual, temos os mesmos problemas e pensamos semelhante
a forma de resolver[50].
Diante do exame detido ao ponto de vista dos
tiririqueiros, o Grupo Técnico prosseguiu com a exclusão da comunidade da TI. A
participação da Tiririca no GT da Funai passou a orientar-se nas
territorialidades específicas na Serra do Arapuá e quatro decisões foram
tomadas pelas lideranças Pankará e Tiririca para a construção das fronteiras
físicas.
A primeira dirigiu-se ao terreiro antigo de
Toré na Serra do Melado. Este passou a pertencer ao território quilombola porque,
na explicação do pajé João Miguel, “os índios que fazem os rituais lá são os
Miguel”[51].
A segunda decisão lidou com a questão do acesso à água, o açude denominado “açude
dos Novaes”. A Serra do Arapuá é abundante de nascentes em relação ao sertão do
pé de serra, deste modo arguiram ser “mais justo o açude ficar no quilombo,
porque dá mais autonomia para eles, que esta fonte de água fique no território
da Tiririca, assim ficam com dois acessos: a nascente do Riachão e o açude”[52]. A terceira decisão focou na disputa de uma
propriedade registrada em cartório no nome da família Novaes. Quem enfrentaria
diretamente a questão? Os tiririqueiros decidiram recuperá-la por ser área
tradicional do quilombo. Por fim, decidiram elaborar um ofício ao Incra
solicitando a abertura de processo para regularização do território quilombola,
no qual argumentam
Entendemos ser de extrema importância o Incra
tomar as devidas providências quanto a urgente regularização do nosso
território tradicional a fim de garantir o nosso direito constitucional e
evitar que os ocupantes não-indígenas e não-quilombolas ameacem a nossa paz e
segurança. As lideranças Pankará e o GT estão garantindo a nossa participação
em toda a discussão que afeta diretamente a vida dos tiririqueiros, pois de
nada adiantará a construção coletiva destes limites se o território da Tiririca
não for também regularizado e desintrusado. Diante disso, nós do quilombo da
Tiririca reivindicamos em caráter de urgência a regularização do território
tradicional da tiririca[53].
No ano de 2012 conseguem a instauração do GT
para regularização do território quilombola, ocasião em que os Pankará são
convidados a integrar o Grupo até a conclusão dos trabalhos. Atualmente o
território de uso comum ainda se encontra sem conclusão pelas providências legais.
As etapas seguintes previstas na legislação, a saber: levantamento fundiário,
indenização aos ocupantes não quilombolas, registro cartorial da terra em nome
da Associação Quilombola, não foram levadas a cabo pelo Incra devido aos
solavancos da democracia brasileira. O governo do presidente Jair Bolsonaro é
marcado por um obscurantismo político e de negação explícita dos direitos
constitucionais destas coletividades[54].
Apesar disso, a comunidade tem conseguido resguardar a posse das áreas de
trabalho coletivo na agricultura de subsistência, criação de animais de pequeno
porte, além dos quintais produtivos quando não há longas estiagens.
O Quilombo Indígena e as lutas em perspectiva
com o povo Pankará
E a
gente queria se fortalecer, a gente queria Tiririca junto aos Pankará.
Essa
forma própria da Tiririca de ser que também,
na sua
história, na sua prática diária,
tem a
forma de fazer e ser Pankará[55].
O termo “quilombo-indígena”, em uma definição
sucinta, consiste na expressão de uma territorialidade específica fundada nas
relações de parentesco, em cosmologias compartilhadas e na aliança política
entre o povo Pankará e a Tiririca dos Crioulos na luta pelo território e
autonomia política. Foi “criado” pela professora Verinha em face de muito
estranhamento, sobretudo quando se apresentavam nos encontros fora da
comunidade dizendo-se indígenas e quilombolas
No movimento quilombola eu participei de umas
oficinas e ganhei uma bolsa com aquele slogan de quilombola. Então, quando a
organização Pankará me elegeu como coordenadora de um dos núcleos de educação
da Serra do Arapuá, eu passei a fazer parte da gestão das escolas Pankará. Um
dia, fui para um encontro de educação escolar indígena no município de
Pesqueira e tinha gente que vinha me perguntar, olhando para minha bolsa: você
não é quilombola? Eu tinha que explicar a história do parentesco com os Pankará,
da luta pela terra. Todo
mundo estranha. Dona Valdeci de Itacuruba [liderança do quilombo Poço dos
Cavalos] me disse: ó Verinha, será que isso não vai atrapalhar? Ou você é
quilombola ou você é indígena. Eu disse: não dona Valdeci. Tem que entender,
porque a gente não pode nascer só de uma mãe, ou só de pai, não tem filho só de
um. E a Tiririca nasce de dois, então é indígena e é quilombola. É um negro com
traço de índio, é um índio com traço de negro, é essa a relação. Depois de
tanto o povo perguntar eu resumi assim: somos um quilombo-indígena e ficou[56].
O
quilombo-indígena vai se constituindo assentado em lembranças de violência racial
tanto quanto em sua resiliência ao lado dos indígenas, resguardadas as
diferenças culturais. Como argumenta Quijano[57],
a razão histórica, embora subordinada à razão instrumental do Estado-nação,
existe na resistência dos povos e grupos sociais subalternizados pela
colonialidade e define um tipo de poder. Acionam um movimento mais amplo, desde
os saberes territoriais, as cosmologias, as redes de solidariedade, os vínculos
afetivos entre as pessoas e com o lugar, para caracterizar a retomada das lutas
outrora interrompidas, entre os anos de 1990 até 2010, diante da ausência
absoluta do Estado e o aumento da violência pelo narcotráfico na região.
No processo de territorialização mais recente, iremos abordar
as principais estratégias empreendidas para a afirmação do quilombo-indígena e
defesa coletiva do território ao lado dos Pankará. A primeira delas faz
referência à retomada da memória referente às políticas de aliança envolvendo a
autoproteção e a prática do Toré no tempo dos mais velhos, nas décadas de quarenta
e cinquenta. Movimento com repercussão na aproximação das
comunidades para além das relações entre seus líderes. Ao rememorar, por
exemplo, o episódio da proibição de acesso a água imposta à família do pajé
Pedro Limeira, deslindam importantes mobilizações de apoio mútuo no contexto de
obliteração persistente
Essa aliança que sempre
teve entre Tiririca e Pankará fortaleceu muito a cultura do Tiririqueiro. Desde
o tempo de Manoel Miguel, lá pelos anos 40, 50, 60 os caboclos lá da Cacaria [aldeia
da Serra do Arapuá] apoiam a gente aqui, porque naquele tempo chamava era
caboclo, não falava índio. Era Luiz Limeira, Zé de Olímpio, o velho Pedro
Limeira na época era moço. Esse pessoal nunca abandonou a Tiririca. Umas quatro
vezes por ano tinha a visita do povo da Cacaria na Tiririca e da Tiririca na
Cacaria. No tempo que teve lá em cima os problemas com os Limeira, que os donos
das terras não deixavam eles circularem na serra, a Tiririca sempre foi porta
aberta, eles passavam por aqui para chegar nos outros cantos. Tinha aquele
apoio porque faziam junto os rituais[58].
Antes da chegada de Manoel Miguel ao
quilombo, a religião era o catolicismo e a umbanda. Os trabalhos ocorriam em casa,
mas com ressalvas, pois não eram bem-vistos entre algumas pessoas da própria
comunidade temerárias de serem chamadas de feiticeiras pela população do
entorno. Manoel Miguel, de certa forma, reconfigura esse cenário. Como dizem,
ele “traduziu” o Toré e a Umbanda para a Gira. Atualmente a tradição
religiosa na Tiririca é uma reelaboração do ritual da Umbanda, do Toré indígena
e do Catolicismo Popular.
Apesar
da violência ser um aspecto muito predominante na oralidade, estratégias de
vida foram mobilizadas graças aos vínculos rituais-religiosos e de parentesco. Até o ano de 1989, era sistemático o fluxo
entre as comunidades situadas na região do Sertão e o Alto da Serra para as
práticas rituais. Um símbolo demarcador dessa relação religiosa é o maracá[59]
de Amélia Caxiado. Mulher da ciência Pankará, foi doutrinada pelos índios Tuxá de
Rodelas, sertão do rio São Francisco baiano, nas décadas de trinta e quarenta e
sua ciência fora transmitida para seu sobrinho, o pajé Manoelzinho Caxiado.
Porém, seu maracá foi dado em vida para Manoel Miguel, sendo autorizada a
utilização nos rituais da Tiririca. No presente, seu filho Roberto assumiu a
liderança religiosa tornando-se o guardador desse objeto ritual
Madrinha Amélia era uma mulher de muita ciência e ela
sabia as pessoas certas para confiar o maracá dela. Porque o maracá você sabe,
é para chamar as forças encantadas e o dela era forte. Só uma pessoa com o
conhecimento dela podia manusear aquele maracá. E o velho Manoel Miguel era
muito da confiança dela. Esse pessoal da Tiririca tem o ritual deles de negro,
que é a Gira e tem o Toré também. A religião dos índios e dos negros sempre foi
discriminada. Assim, discriminada para o branco, entre nós aqui não. Então se
minha madrinha achou que era para ficar na Tiririca é porque tem que ficar lá. Está
na Tiririca está em nossa casa não é mesmo? Porque aqui é tudo parente mesmo[60].
Por “serem tudo parente” e “terem o mesmo
ritual” o
quilombo-indígena ganhou força de enunciação quando o prefeito de Carnaubeira
da Penha, membro das ditas “famílias tradicionais” na localidade e antagonista
histórico dos Pankará, usou do seu posto de chefe do Poder Executivo municipal
para violar os direitos da comunidade Tiririca. O fato ocorreu no ano de 2010, quando o
prefeito tomou ciência da incorporação da Tiririca no Grupo Técnico para os
estudos de regularização da Terra Indígena. Contrariado, fechou a única escola
de educação básica da comunidade[61],
cujo feito as lideranças compreendem como um ataque à renovação da aliança
política
A prefeitura fechou a
escola quando soube que a gente estava aliado dos Pankará. No GT da Funai,
quando veio a cacica Dorinha e as outras lideranças todas, a gente contou das
nossas dificuldades, até da alimentação na escola. O município não mandava
merenda porque é lugar de negro, as crianças comiam porque eu trazia da minha
casa. Então, Dorinha e Luciete, se indignaram com nossa situação e passaram a
nos ajudar. A gente aderiu esse movimento junto aos Pankará para essas crianças
terem uma assistência melhor. Em 2010 a escola passou a funcionar na Casa
Grande, antiga casa de meu pai. Depois a gente achou errado essa escola, aqui
dentro do quilombo, fechada. Até porque, o terreno foi doado por meu pai. Ele
não doou para prefeitura, e sim para a comunidade, para construir uma escola
para a comunidade. Com apoio dos Pankará reabrimos o prédio escolar e voltamos
os alunos para lá. Hoje o governo do Estado assumiu e é escola indígena
administrativamente falando, porque faz parte da rede estadual de ensino junto
todas as outras escolas da Serra do Arapuá. Mas os conteúdos são indígenas,
quilombolas e os da sociedade envolvente também porque ninguém está isolado no
mundo[62].
A ‘retomada da escola’, assim designado pela comunidade,
representou a ruptura das relações de subordinação ao Poder Executivo municipal
simbolizando o primeiro enfrentamento enquanto quilombo-indígena. A ação estratégica
não só fortaleceu os laços políticos internos entre as famílias da Tiririca como
também produziu um efeito de poder na região, segundo o ponto de vista Pankará
A gente viu a Tiririca
muito perseguida, muita esquecida pelo Poder Público. O que a gente pensou?
Vamos organizar a educação. Dissemos: vamos incluir na nossa organização da
educação as escolas da Tiririca e com isso, a garantia do direito que Pankará
já estava usufruindo. Então, o Estado [Secretaria Estadual de Educação de
Pernambuco] disse: como vocês vêm trazendo essa escola, a Tiririca não é um
quilombo? Vocês agora querem que a gente reconheça, inclua, dê o direito a um
quilombo de escola indígena? Afinal de contas, eles são índios ou são
quilombolas? Aí Verinha foi e disse: “lá é um quilombo-indígena porque a nossa
história e a nossa relação familiar são a mesma de Pankará”. E a religião
contava muito nesse sentido, dos Encantos de Luz, da gente cultuar os mesmos
rituais, enfim, isso estava muito explicado, o Estado não entende. E acho que o
Estado foi vencido na prática ao perceber que isso é muito natural aqui no
território, e quando a gente começa a executar, a construir juntos, as práticas
pedagógicas juntos, todo mundo viu como isso na prática acontece para nós[63].
A busca por um projeto de educação autônomo tem origem no
movimento deflagrado
anos antes pelo povo Pankará no contexto de sua emergência étnica. A
circunstância desencadeadora do movimento ‘retomada das escolas’ é análoga ao ocorrido
na Tiririca. O prefeito de Carnaubeira da Penha tentou impedir a estadualização
das escolas para mantê-las sob sua governança. Sobre este movimento analisamos
em outro trabalho[64], importa aqui situar a estratégia
pedagógica adotada para a formação, politização, mobilização e organização do
povo face a antagonistas históricos.
A gestão da escola passa a ser dirigida pela Organização
Interna da Educação Escolar Indígena Pankará (OIEEIP), instância destacada na
organização sociopolítica na Serra do Arapuá. Nesse contexto, a professora Verinha,
designada pelo conselho de lideranças, assume a função de coordenadora - posteriormente,
professoras são escolhidas na própria comunidade e a escola volta a funcionar
por conta e risco do povo. Depois de um ano, a Secretaria de Educação do Estado
de Pernambuco cede às pressões da Comissão de Professores e Professoras
Indígenas de Pernambuco (Copipe) e decreta sua inclusão na rede estadual, provendo-a
de recursos humanos e materiais.
No
curso dessas mudanças, os Pankará avaliam criticamente o currículo em seus
fundamentos e programas. Não era mais possível manter uma educação formal anacrônica
e avessa às lutas em curso. Assentado em cinco eixos norteadores -território,
identidade, organização, história e interculturalidade-, o currículo é
incorporado ao Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas da Serra do Arapuá.
No processo
de reorganização étnica e de luta territorial, a comunidade decide instituir modos
próprios de representação. Criam seu próprio conselho interno coordenado pelo cacique,
pajé, mestre/mestra, contra-mestre/contra-mestra[65].
Quanto ao cacique e pajé, foram indicados o neto e bisneto de Manoel Miguel.
Diferenciando-se da organização Pankará, composta da cacique, pajés e lideranças
de aldeia, a Tiririca traz para sua representação política figuras de
autoridade no ritual do Toré e Gira, os mestres e contra-mestres, subtende-se
que a política é legitimada no e pelo ritual.
Quando
são questionados sobre as dinâmicas internas envolvendo as relações de poder
entre o quilombo e a Terra Indígena, arguem que há relação de alteridade na
gestão do território e exercem poderes localizados em determinadas situações, o
que se faz sem excluir a aliança política tecida sob uma mesma trama de
sentidos no ritual, nas crenças, nos costumes
A Serra do Arapuá é um território com negro e índio e é
assim. Na Tiririca é um quilombo-indígena e a gente se identifica com as coisas
dos indígenas. É semelhante o ritual, a valorização dos mais velhos, o uso das
matas, da jurema, os remédios caseiros, o modo de vida é tal qual índios e quilombolas.
A gente acredita na cura através dos Encantados de luz. Essa foi a nossa criação[66].
Sem
perder de vista as impossibilidades no e do Estado brasileiro, nota-se,
na atualidade, que a deliberação autônoma alusiva a situação jurídica de cada
território fortaleceu a organização sociopolítica na Serra do Arapuá.
Aprenderam na experiência a demarcar os campos de atuação: ora negociando ou
articulando interesses comuns, ora particularizando as demandas.
Rita
Segato[67]
defende que um Estado garantidor é aquele que não invade os espaços
comunitários de construção de consensos e dissensos, devendo assegurar os modos
como os grupos étnicos vão operar suas estratégias e decisões internas. Mesmo
porque, a existência dessas coletividades no mundo passa justamente pela
capacidade que têm de recriar formas de existir diante das mais diversas
agressões a que estiveram submetidas.
O
caráter processual do pensamento indígena/quilombola relativo a essas dinâmicas
territoriais e de poder resulta da politização dos sujeitos acerca das suas
especificidades. Alfredo Wagner explica que as territorialidades específicas “podem
ser consideradas, portanto, como resultantes de diferentes processos sociais de
territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento
coletivo que convergem para um território”[68]. No
conflito com a classe dominante da região, a fragilidade dos Pankará e da
Tiririca reside, hoje, no processo inconcluso de regularização jurídica dos
dois territórios. A omissão do Estado brasileiro coloca sob risco permanente a
manutenção das relações de vida em todas as suas dimensões.
Notas para as considerações
finais: os desafios para o reconhecimento de novas territorialidades plurais
Esta breve etnografia buscou
colaborar para a reflexão
antropológica das formas pluralistas de resistência à colonialidade do poder
existentes em nosso continente. E, tal como propõe Aníbal Quijano, essas resistências
são bem mais amplas e complexas; resultam em heterodoxias desafiadoras ao
Estado brasileiro confrontando poderes locais. No desenvolvimento das ideias
aqui apresentadas, partimos do pressuposto de que as diversas relações
interétnicas situadas na realidade social latino-americana e, de modo especial,
no Brasil, foram estruturadas em categorias coloniais orientadas ao apagamento
do outro. Não reconhecem as diversas experiências de ser e estar no mundo
historicamente dominadas e exploradas[69].
Considerando a grande
diversidade de povos e comunidades tradicionais em todas as regiões do Brasil, certamente
a situação etnográfica descrita neste artigo não é a única no país. São
conhecidas cerca de doze categorias sociais[70], cada
uma representa inúmeras comunidades, povos e movimentos sociais. Em relação às
comunidades quilombolas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE, 2020)[71],
há no território nacional cerca de 5.972 (cinco
mil, quatrocentos e setenta e dois) localidades com população autodeclarada
quilombola, mas apenas 404 (quatrocentos e quatro) são territórios oficialmente
reconhecidos. No Nordeste, região
onde se concentra a maior parte desses territórios, há 3.171 (três mil, cento e setenta e um) localidades quilombolas, mas apenas
176 (cento e setenta e seis) foram oficialmente reconhecidos.
Mesmo com toda essa diversidade, observamos na
Tiririca dos Crioulos elementos diferenciadores ao exame etnográfico em relação
aos estudos análogos na região. Fazemos alusão aos casos presentes no trabalho de
José Maurício Arruti[72] sobre
as relações entre negros e indígenas. O autor problematiza a plasticidade das
categorias identitárias baseado em várias realidades na região do São
Francisco, dentre as quais indígenas e quilombolas operam narrativas internas
de distinção entre “ser índio” e “ser negro”. Exemplos da construção de
marcadores identitários homogêneos é decorrente das tensões originadas no
período de extinção dos aldeamentos indígenas circundados de comunidades negras
de ex-escravizados e de camponeses empobrecidos. Os casamentos interétnicos e a
consequente miscigenação alteraram as características mais objetivas da
distinção racial. Por exemplo, o fenótipo reclassificando-os “não tanto ou
principalmente pela observação de suas características intrínsecas (fossem elas
as mais obtusas ou estereotipadas), mas segundo os interesses e os instrumentos
de dominação disponíveis”[73].
Assim, identificados sob a
alcunha de marginais e pobres, remanescentes desde final do século XIX até as
mudanças significativas da década de oitenta, essas coletividades surgem no
cenário político da Constituinte oferecendo o próprio ponto de vista crítico às
categorias coloniais. Negociam com o Estado os modelos jurídicos possíveis de
abrigar a diferença sob as classificações genéricas de índios e remanescentes
de quilombos. Reconhecemos as conquistas dos movimentos indígenas e quilombolas
quanto ao reconhecimento do Estado nacional de suas identidades políticas, mas
questionamos a razão desse mesmo Estado não reconhecer a agenda política dos
movimentos quando afirmam a pluralidade das suas territorialidades.
De forma reiterada, a
quilombola Givânia Maria da Silva[74] tem
dito que seja nos espaços políticos dos movimentos indígena e quilombola, seja
nos espaços institucionais da pesquisa acadêmica e do Estado, o ordenamento
jurídico do país tem a oportunidade de se atualizar quando aceita arcar com as
demandas de concepções de territorialidade estabelecidas há décadas, e até
século, por essas comunidades, todavia ainda inéditas para o próprio
ordenamento jurídico e por quem o manuseia. Ora, o ordenamento jurídico
nacional, tendo a Constituição enquanto carta máxima, também não necessita de
atualizações em vista de novas insurgências de identidades, territorialidades,
inclusive como efeito do que ele mesmo se tornou em reflexo das reivindicações
dos povos e comunidades? A pergunta pode ser lida corroborando esse modo dual
de se entender comunidade de um território possível de ser demarcado como quilombo,
mas que para quem o ocupa se trata de um quilombo-indígena. Se esse é o
entendimento comunitário, ao Estado cabe as salvaguardas jurídicas e de
políticas públicas respeitando a escolha coletiva autodeterminada, com direitos
estabelecidos de forma separada, os quais comumente respondem apenas à
denominação administrativamente definida pelo Poder Executivo (ou é Terra
Indígena ou é Quilombo) em detrimento do modo de entender dual autóctone.
Embora registremos um maior protagonismo dos povos indígenas,
comunidades quilombolas e comunidades tradicionais na participação de suas
organizações sociais na disputa pelas definições das políticas públicas a nível
nacional, a eficácia simbólica do reconhecimento dessas novas identidades
étnicas, no contexto pós-1988, tem sido pensada pelo Estado na dimensão
multiculturalista. O multiculturalismo neoliberal sustenta-se na concepção de
tolerância e não questiona o problema das relações de poder, da exploração, das
desigualdades, das exclusões, permanecendo intacta a estrutura social e
institucional que constrói as diferenças, “o recurso central à noção de
‘tolerância’ não exige um envolvimento ativo com os ‘outros’ e reforça o
sentimento de superioridade de quem fala de um autodesignado lugar de
universalidade”[75].
Para o jurista Carlos Wolkmer[76],
a lógica do monismo social e da soberania estatal ̶ com
destaque às peculiaridades militares realçadas durante o governo de Jair
Bolsonaro ̶ dificulta o estabelecimento de um marco de
alteridade na perspectiva de um pluralismo seja jurídico, social, cultural ou
político. Para o autor, o “pluralismo”, enquanto formulação teórica e
doutrinária, “designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas
de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria,
ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que
não se reduzem entre si”[77].
Diante do exposto, reconhecemos nas diversas mobilizações
políticas das comunidades negras rurais a contribuição na construção de novos
paradigmas e desafios ao conceito de quilombo, afastando o viés histórico colonialista
na direção de uma autoatribuição ratificada na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Porquanto, persiste a necessidade de asseverar
às realidades etnográficas plurais, a exemplo do quilombo-indígena Tiririca dos
Crioulos, políticas públicas resultantes das territorialidades comuns quando
assim desejarem as comunidades em seus processos decisórios autônomos
A luta dos grupos étnicos
pelo reconhecimento perante o Estado brasileiro abre novas possibilidades de
debates sobre a realidade social, evidenciando o confronto existente entre
identidades étnicas geradas em torno de disputas territoriais. Essa situação
questiona os limites espaciais tradicionalmente traçados pelas leis nacionais,
aqueles que definem a cidade ou os espaços no interior da própria cidade e
direcionam as discussões teóricas na busca de um aprofundamento do debate sobre
a produção física e simbólica do espaço, pois o espaço é também objeto de
disputa[78].
Conforme descrito, a
constituição de grupos de trabalho distintos (Funai/Incra), para atuar na Serra
do Arapuá, obedeceu a procedimentos burocráticos coordenados pelas agências
estatais. Condicionou a separação de um território pluriétnico em categorias
jurídicas distintas, submetendo-o a relações de subordinação ao Estado que
aprofundam as desigualdades sociais. Isso porque a oferta de políticas públicas
para indígenas e quilombolas no Brasil segue a regra da definição jurídica do
território.
Ao ponderar que as
modalidades de políticas específicas para indígenas têm maior avanço do que
para os quilombolas, a comunidade da Tiririca encontra-se em visível
desigualdade no campo da assistência, na maior parte das vezes desassistida, a
exemplo das equipes de saúde indígena que não podem atender as famílias do
quilombo-indígena. Enquanto os Pankará passam a gozar, dentro do seu
território, de um mínimo de direitos no exercício de sua cidadania específica,
as famílias da Tiririca precisam deslocar-se para os centros urbanos mais
próximos. Enfrentam toda a dificuldade de transporte e recursos financeiros
para conseguir atendimento na saúde e previdência. A única conquista dentro dessa
transgressão foi a estadualização da escola. Ocorre que não sabemos até quando
essa situação jurídica, de uma escola indígena em território quilombola, se
sustenta.
No Brasil, a participação
dos povos diretamente interessados na definição dos seus territórios denota um
certo avanço da legislação republicana, não fosse o contrassenso do monismo
jurídico estatal determinar os procedimentos administrativos implicados. Legitimado
na suposta neutralidade das decisões técnicas de suas agências, o poder estatal
reafirma a dominação simbólica somada ao peso da força institucional. O
quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos torna-se um exemplo etnográfico para
demonstrar como categorias locais podem desafiar as relações de poder com o
Estado ao sustentar uma resistência na lógica identitária dual e não dicotômica. Na esteira do que
argumenta Escobar: “A través de sus prácticas
diarias de ser, saber y hacer, los grupos locales han construido activamente
sus mundos socio-naturales durante varios siglos, incluso cuando lo han hecho
en medio de otras fuerzas[79].
Em
outras palavras, a autoidentificação do quilombo-indígena parece,
entretanto, trazer algo mais que um adendo à categoria jurídico-política de
quilombo. Põe em xeque o poder de nominar as coisas pelo direito[80], tensionam as categorias
jurídicas universais que visam reduzir a realidade social às fórmulas jurídicas
que desprezam, põem à margem do direito, a pluralidade de mundos. Por fim,
compartilhamos nosso sentimento e afetação com a experiência de campo apresentada
acionando aportes epistemológicos fora da academia. Pedimos licença para
expressar nossas inquietações na poesia de Patativa do Assaré intitulada “Eu e
o Sertão”[81]
Sertão, argúem te cantô,
Eu sempre tenho cantado
E ainda cantando tô,
Pruquê, meu torrão amado,
Munto te prezo, te quero
E vejo qui os teus mistéro
Ninguém sabe decifrá.
A tua beleza é tanta,
Qui o poeta canta, canta,
E inda fica o qui cantá.
Ainda fica o que cantar e
contar. Concluímos o artigo agradecendo aos Pankará e à Tiririca dos Crioulos
por partilharem conteúdos tão sensíveis ao se disponibilizarem nossos
interlocutores e interlocutoras na pesquisa. Os saberes e conhecimentos partilhados
conosco sobre identidade, território e resistência, durante os três anos de
pesquisa etnográfica, tornou possível um primeiro passo para a nossa compreensão
acerca do significado e repercussões da formação social do quilombo-indígena no
processo de ocupação tradicional na Serra do Arapuá.
[1] Entrevista com a liderança Verinha, do
Quilombo Tiririca dos Crioulos, 2013, realizada por Caroline Mendonça no marco
do projeto de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco/Brasil. A pesquisa de campo ocorreu em
períodos intercalados entre os anos de 2010 e 2013 com financiamento da
Pró-Reitoria de Pesquisa da UFPE.
[2] Aludimos às atividades desenvolvidas entre
os anos de 1998 e 2011 no Conselho Indigenista Missionário (Cimi, regional
Nordeste) e no Centro de Cultura Luiz Freire (Organização Não-Governamental,
Olinda, Pernambuco), respectivamente. Os povos indígenas em Pernambuco situados
no sertão do São Francisco são: Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras
Pankararu, Pankaiuká, Atikum, Pankará, Pankará Serrote dos Campos, Truká.
[3]
Órgão indigenista oficial vinculado ao Ministério da Justiça (MJ).
[4]
Mendonça, Caroline Farias Leal (2013), Insurgência política e desobediência
epistêmica: movimento descolonial de indígenas e quilombolas na Serra do
Arapuá. [Tese Doutorado em Antropologia]. Recife-PE, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE).
[5]
Instituição pública da esfera federal voltada para promoção de políticas
afirmativas da população negra. É de sua competência a emissão de certidão às
comunidades quilombolas e sua inscrição no cadastro geral de Comunidades Remanescentes
de Quilombos definidas no artigo 68 ADCT da Constituição Federal de 1988.
[6] Categoria jurídica definida no artigo 68 ADCT da
Constituição Federal de 1988. O termo “remanescentes” é muito criticado na
antropologia brasileira e pelo movimento quilombola devido a sua conotação
residual contrapondo a presença de sujeitos políticos organizados na
contemporaneidade. A agenda política do movimento defende as categorias
“comunidades quilombolas” e “quilombos”. Sobre este tema, ver: Arruti, José
Maurício (2000), “Direitos étnicos no Brasil e na Colômbia: notas comparativas
sobre hibridização, segmentação e mobilização política de índios e negros”, Horizontes Antropológicos, nº 14, pp. 93-123.
[7]
Órgão Federal vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
[8] Citado
por Walsh, Catherine (2009), “Interculturalidad crítica y pedagogía
de-colonial: apuestas (des) de el in-surgir, re-existir y re-vivir”, Revista
(entre palabras), nº 3, p. 12
[9]
Hohenthal Jr., William Dalton (1960), “As tribos indígenas do médio e baixo São
Francisco”, Revista do Museu Paulista, Nova Série, nº 12, pp. 37-71.
[10] Prance, Ghillean Tolmie (1982), “Forest refuges:
evidences from woody angiosperms”. In Prance, Ghillean Tolmie, Biological diversification in the tropics, New York, Columbia
University Press.
[11] Mendonça, Caroline Leal; Andrade,
Lara (2013), Relatório de
Identificação e Delimitação do território da Comunidade Quilombola Tiririca dos
Crioulos, Petrolina-PE, Ministério do Desenvolvimento
Agrário/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/SR 29.
[12]
Portaria Fundação Cultural Palmares (FCP) Nº13, em 04 de março de 2008,
registro nº 992, fl 08.
[13]
A Terra Indígena Pankará está delimitada aguardando a Portaria Declaratória e
demais procedimentos. Diário Oficial da União de 20/04/2018
(Adiante D.O.U [Diário Oficial da União], Despacho Nº 1, de 19 de abril de
2018. Edição: 76. Seção: 1. Páginas: 29-32. Ministério da Justiça/Fundação
Nacional do Índio. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diários
/187121552/dou-secao-1-20-04-2018-pg-29 [Consulta: 13 de abril de 2022].
[14]
Mendonça, Caroline Farias Leal (2018), Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Serra do Arapuá, Povo Indígena Pankará,
Carnaubeira da Penha-PE, Brasília-DF, Ministério da Justiça/Fundação
Nacional do Índio.
[15]
Arquivo Público Estadual Jordão Emerênciano (APEJE/PE), Câmara Municipal 54,
Floresta. OFÍCIO,18jan. 1866, fl. 374.
[16]
Andrade, Lara (2010), “Nem emergentes, nem ressurgentes, nós somos povos
resistentes”: território e organização sociopolítica entre os Pankará.
Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais), Recife-PE, Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE).
[17] O ‘mandonismo’, categoria empregada por José
Murilo de Carvalho (1997) é um conceito relacionado as ideias de
coronelismo e clientelismo, contudo não são sinônimos e guardam suas
especificidades. Refere-se ao exercício de poder arbitrário por um chefe de
oligarquia local. Aquele que detém privilégios econômicos, são donos de terra e
mandam nos sertanejos pobres utilizando recursos de violência armada, tortura,
e outros meios para interditar o livre acesso destes ao trabalho e à vida
política autônoma. Estudiosos do tema explicam ser um modo de operar a política
no início da colonização perdurando até os dias de hoje nas regiões em que o
Estado é ausente. Cf. Carvalho, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo,
clientelismo: uma discussão conceitual.” Dados, Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, pp, 229-250. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003 [Consulta: 3 de agosto del
2013].
[18]
Versiani, Flávio Rabel; Vergolino, José Raimundo Oliveira (2016), “Estrutura de
Posse de Escravos em Pernambuco”. Em Versiani; Nogueról (orgs.), Muitos
Escravos, Muitos Senhores..., Brasília, Edu-UnB, pp. 147-162.
[19] Galliza,
Diana Soares (1977), O declínio da Escravidão na Paraíba
(1850-1888). [Dissertação
de Mestrado em História], Recife, Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco.
[20] Mendonça, Caroline
Farias Leal, 2013, Ob. Cit., p. 80.
[21]
Ferreira, Maria (2011), Práticas de sociabilidade de proprietários
fundiários de Floresta e de Tacaratú: Sertão de Pernambuco (1840-1880).
[Tese Doutorado em História]. Recife-PE, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, p.213.
[22]
Fanon,
Frantz (2010),
Os Condenados da Terra,
Juiz de Fora, Universidade Federal de Juiz de Fora.
[23]
Ferreira, Maria, 2011, Ob. Cit., p. 213.
[24] Quijano Aníbal (2005a), “Colonialidade do poder,
eurocentrismo e América Latina”. Em Lander, Edgardo (org.), A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, Buenos
Aires, CLACSO, (Colección
Sur Sur), p. 228.
[25] Quijano Aníbal (2005b), “Dom Quixote e os moinhos de vento na América
Latina”, Estudos
Avançados – USP, Dossiê América Latina, vol. 19, nº 55, pp 9-31.
[26] Mignolo, Walter (2008), “Desobediência Epistêmica: a opção descolonial
e o significado de identidade em política”, Cadernos de Letras da UFF,
Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 298.
[27] Escobar, Arturo y Restrepo,
Eduardo (Traductor) (2010), “Territorios de diferencia: lugar, movimientos,
vida, redes,” Biblioteca Digital Juan Comas. Disponible en: http://bdjc.iia.unam. mx/items/show/108 [Consulta 21 de novembro de 2022].
[29]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.
[30]
A pesquisa de campo no quilombo-indígena teve início em 2010, integrando as
atividades do meu doutoramento e dos trabalhos da Funai. Outras incursões ocorreram
no contexto da coordenação do Grupo de Trabalho para a caracterização
histórica, econômica, ambiental e sociocultural para o Incra, entre 2012 e 2013.
Nesta última fase contou com a participação e parceria da antropóloga Lara
Andrade de Almeida resultando na elaboração, de nossa autoria, do Relatório Antropológico de Identificação e
Delimitação do território da Comunidade Quilombola Tiririca dos Crioulos. Ver: Mendonça,
Caroline Leal; Andrade, Lara, 2013, Ob.
Cit., pp 1-154.
[31]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.
[32]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.
[33]
Entrevista com Maria de Ginú, parteira e anciã da Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.
[34]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2010, Ob. Cit.
[35]
Pai do pajé Pankará João Miguel. Antônio Miguel permaneceu morando na Serra do
Arapuá, aldeia Enjeitado.
[36]
Em tradução sucinta o Toré é um ritual comum aos povos indígenas na região
Nordeste. Na primeira metade do século XX foi exigido pelo Serviço de Proteção
ao Índio como critério de comprovação da identidade indígena.
[37]
Entrevista com João Miguel, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit. Nesta entrevista o pajé explica a diferença entre os
rituais indígenas praticados no Nordeste, chamado de Toré, e os rituais de
matriz afrodescendente como a Umbanda e a Gira. A Jurema é uma planta
alucinógena (do gênero Mimosa) consumida nos rituais do Toré para
facilitar a comunicação com os entes espirituais (Encantados).
[38]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.
[39]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.
[40]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.
[41]
Entrevista com Izaias Rosa, liderança Pankará, 2010, Ob. Cit.
[42]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[43] Fanon Frantz (2010), Os Condenados da Terra, Juiz de Fora: UFJF, p. 59.
[44]
Entrevista com Maria de Ginú, parteira e anciã da Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.
[45]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2013, Ob. Cit.
[46]
Entrevista com Roberto, liderança da Tiririca, 2010, Ob. Cit.
[47]
Henriques Isabel Castro (2004), Território e Identidade. A construção da
Angola colonial (c.1872 – c.1926), Lisboa, Centro de História da
Universidade de Lisboa.
[48] Henriques
Isabel Castro, 2004, Ob. Cit.,
p. 13.
[49]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[50]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[51]
Entrevista com João Miguel, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit. O pajé é primo de Verinha e Roberto, sobrinho de Manoel
Miguel.
[52]
Entrevista com Dorinha Limeira, cacique Pankará, 2010, Ob. Cit.
[53]
Ofício nº 4 de 2010 da Associação dos Remanescentes do Quilombo Tiririca
endereçado ao Incra - DF.
[54]
Usamos a expressão de “negação explícita” pelo fato de o chefe do Poder
Executivo federal declarar publicamente suas intenções de não reconhecimento dos
direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas. Há
inúmeras reportagens que circulam na impressa nacional e internacional sobre o
tema. Veja-se exemplo desta repercussão na seguinte declaração de Bolsonaro: “Enquanto
eu for presidente, não tem demarcação de terra indígena”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-enquanto-eu-for-presidente-nao-tem-demarcacao-de-terraindigena/amp/#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=16
514128283120&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com. [Consulta: 18 de abril
de 2022].
[55]
Trecho da entrevista com Luciete, professora Pankará, 2013, Ob. Cit.
[56]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[57] Quijano Aníbal (1988), “America latina: las bases de otra racionalidade”.
En Quijano, Aníbal, Modernidad, identidad y utopia en América Latina,
Lima, Sociedade e Política Ediciones, pp. 29-33.
[58]
Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[59] Objeto
ritual feito da cabaça (Lagenaria siceraria) para evocar os espíritos
ancestrais.
[60]
Entrevista com Manoelzinho Caxiado, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit.
[61]
No estado de Pernambuco a oferta da educação escolar em comunidades quilombolas
é de responsabilidade dos municípios. Já a educação escolar indígena é de
responsabilidade do governo estadual. A transferência de reponsabilidades
destas últimas para a rede estadual ocorreu no ano de 2012 em razão das lutas da
Comissão de Professores/as Indígenas de Pernambuco (Copipe) e de seus aliados. Foi
uma estratégia política para assegurar a autonomia das escolas indígenas
conferida pela legislação nacional, pois na maioria das realidades em
Pernambuco, os chefes dos Poderes Executivos municipais são invasores das
terras indígenas.
[62]
Entrevista com Verinha, liderança da Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[63] Entrevista
com Luciete, professora Pankará, 2013, Ob.
Cit.
[64] Mendonça Caroline (2019), “Retomada da
educação escolar. Um estudo sobre educação, território e poder na experiência Pankará”, Interritórios Revista de
Educação, vol. 5, nº 9. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/interritorios/article/view/243605 [Consulta: 12 de maio de 2022].
[65]
Santos Sá, Aleckssandra; Serradela,
Larissa Isidoro; y Neto, Nivaldo Aureliano (2016), Tiririca dos crioulos: um
quilombo-indígena, Carnaubeira da Penha-PE, Associação dos Remanescentes do
Quilombo Tiririca. Disponível em: http://afro.culturadigital.br/wp-content/uploads/2016/07
/Tiririca_dos_crioulos_um_quilombo_indi%CC%81gena-1.pdf . [Consulta em 20 de abril
de 2022].
[66]
Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.
[67] Segato,
Rita Laura (2014), “Que cada povo
teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com
legisladores”, Direito.UnB - Revista de Direito da Universidade de
Brasília, vol. 1, nº 1), p. 65–92. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb
/article/view/24623 [Consulta: 13 de abril de 2022].
[68] Almeida, Alfredo Wagner
Berno de (2006), Terras de
Quilombo, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais
e Fundos de Pasto: terras tradicionalmente ocupadas, Manaus,
PPGSCA-UFAM, p. 25.
[69] Restrepo, Eduardo y Rojas, Axel
(2010), Inflexión decolonial:
fuentes, conceptos cuestionamientos, Popayán, Samava.
[70]
Almeida, Alfredo Wagner
Berno de (2006), Ob. Cit., pp 57-61.
As categorias sociais citadas pelo autor são: povos indígenas, quilombolas,
seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores,
ribeirinhos, atingidos por barragens, atingidos pela base de Alcântara (MA),
fundo de pasto e faxinal.
[71] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (2020), “Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os
indígenas e quilombolas para enfrentamento à Covid-19. Notas Técnicas”, Volume
especial. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao _do_territorio/tipologias_do_territorio/base_de_informacoes_sobre_os_povos_indigenas_e_quilombolas/indigenas_e_quilombolas_2019/Notas_Tecnicas_Base_indigenas_e_quilombolas_20200520.pdf. [Consulta:11 de julho de 2022]
[72]
Arruti, José Maurício Andion (1997), “A emergência dos ‘remanescentes’: notas
para o diálogo entre indígenas e quilombolas”, MANA, vol. 3, nº 2, pp. 7-38.
[73]
Arruti, José Maurício Andion, 1997, Ob. Cit., p. 17.
[74] Quilombola de Conceição das
Crioulas, em Salgueiro, Pernambuco, Givânia é uma das fundadoras da Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Integrou a Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais (Subcom), na
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do governo
federal, durante a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, onde contribuiu na
gestão da política de promoção da igualdade racial.
[75] Sousa Santos, Boaventura y Nunes, João Arriscado, 2003, Ob. Cit.,
p. 31.
[76] Wolkmer,
Antonio Carlos (2001), Pluralismo
jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito, São
Paulo,editora Alfa-Omega.
[77] Wolkmer, Antonio Carlos, 2001, Ob. Cit., p. 171.
[78] Vieira, Judith Costa (2010), “Quem pode ser Quilombola?
A(RE) Construção da Identidade Coletiva do Quilombo do Maicá, Santarém, Pará”.
Em Almeida, Alfredo Wagner Berno de [et al.] (orgs.). Cadernos de debates
Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos, Manaus,
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UEA Edições, p. 179.
[79]
Escobar, Arturo y
Restrepo, Eduardo, 2010, Ob.Cit., p. 48.
[80] Bourdieu Pierre (2004), Os usos sociais da ciência: por
uma sociologia clínica do campo científico,
São Paulo: UNESP.
[81]
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Poesia Nordestina. Parabéns Patativa! 7 poemas de Assaré neste
especial de aniversário. Sua obra conta sobre a vida do povo sertanejo, suas dores e lutas, 5
março de 2021. Disponível em: https://mst.org.br/2021/03/05/
parabens-patativa-7-poemas-de-assare-neste-especial-de-aniversario/ [Consulta:
01 de setembro de 2022].