Revista Andes, Antropología e Historia

Vol. 34, Nº 1, Enero – Junio 2023

 

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 https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ ISSN Nº 1668-8090

 

 

A FORMAÇÃO SOCIAL DO QUILOMBO-INDÍGENA TIRIRICA

DOS CRIOULOS: CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DAS

RESISTÊNCIAS E DAS LUTAS DECOLONIAIS

 

LA FORMACIÓN SOCIAL DEL QUILOMBO-INDÍGENA TIRIRICA

DOS CRIOULOS: APORTES AL ESTUDIO DE LAS

RESISTENCIAS Y LUCHAS DECOLONIALES

 

THE SOCIAL FORMATION OF THE INDIGENOUS QUILOMBO TIRIRICA DOS CRIOULOS: CONTRIBUTIONS TO THE STUDY OF RESISTANCE AND DECOLONIAL STRUGGLES

 

Caroline Farias Leal Mendonça

Universidade Federal de Pernambuco/Brasil

caroline.mendonca@ufpe.br

 

                                                                           Sandro Henrique Calheiros Lôbo

Curso de Direito da Faculdade Cesmac do Sertão, Alagoas/Brasil.

sandro.lobo@cesmac.edu.br

 

Fecha de ingreso: 23/05/2022 - Fecha de aceptación: 24/11/2022

 

Resumo

Este artigo busca apresentar, por meio da descrição etnográfica, o processo histórico e político de formação de uma comunidade rural, a Tiririca dos Crioulos, autoidentificada ‘quilombo-indígena’, no sertão do São Francisco, em Pernambuco, nordeste do Brasil. Do ponto de vista jurídico, a Carta Constitucional de 1988 define as categorias identitárias indígenas e quilombolas em sujeitos de direitos distintos. Todavia, a realidade empírica demonstra o quanto as formas de resistência à colonialidade do poder, tal como propõe Aníbal Quijano, são bem mais amplas e complexas: resultam em heterodoxias desafiadoras ao Estado colonial brasileiro confrontando poderes locais. Pensar quilombo-indígena como categoria local de resistência implica questionar as categorias jurídico-políticas coloniais. Ao mesmo tempo, parece desafiar à formulação de políticas públicas - incluindo nelas o reconhecimento territorial. Apoiados em Frantz Fanon e nas teorias decoloniais (Arturo Escobar; Rita Segato; Walter Mignolo) o texto objetiva contribuir para o debate antropológico acerca das mais variadas formas de resistências sustentadas pela pluralidade histórica e de luta partilhada para a defesa do território.

Palavras-chave: quilombo-indígena, resistência, território, Tiririca dos Crioulos

 

 

Resumen

A partir de la descripción etnográfica, este artículo se enfoca en el proceso histórico y político de formación de la comunidad rural Tiririca dos Crioulos, autoidentificada quilombola-indígena, y situada en el Sertão pernambucano de São Francisco (nordeste brasileño). Desde el punto de vista jurídico, la Constitución de 1988 define las categorías identitarias indígenas y quilombolas en sujetos de derecho distintos. Sin embargo, en términos empíricos, resulta evidente que, como propone Aníbal Quijano, las formas de resistencia a la colonialidad del poder son más amplias y complejas; resultan en heterodoxias desafíantes al Estado colonial brasileño y confrontan los poderes locales. Pensar en quilombo indígena como categoria local resistencia significa cuestionar las categorías jurídico-políticas coloniales, al mismo tiempo se constituye en un desafío para la formulación de políticas públicas y para el reconocimiento territorial. Apoyados en Frantz Fanon y en las teorías decoloniales (Arturo Escobar; Rita Segato; Walter Mignolo), este texto tiene por objetivo contribuir al debate antropológico sobre las diversas formas de resistencia sustentadas en la pluralidad histórica y de lucha compartida para la defensa del territorio. 

 

Palabras claves: Quilombo-indígena, resistencia, territorio, Tiririca dos Crioulos 

 

 

Abstract

This paper aims to present, from the ethnographic description, the historical and political process of constitution of a rural black community, the Tiririca dos Crioulos, which self-identifies as an 'indigenous quilombo', in the “sertão” of São Francisco in Pernambuco State (Northeast Brazil). From a legal point of view, the 1988 Constitution recognizes indigenous and quilombola identity as categories of subjects with distinguishing rights. However, empirical reality shows that the forms of resistance facing the coloniality of power, as proposed by Aníbal Quijano, are much broader and more complex; it results in heterodoxies that challenge the Brazilian colonial state, and confront local powers. Thinking indigenous quilombos as a local category of resistance implies questioning colonial legal-political categories and unfolds the State's challenges to formulate public policies, including territorial recognition. From this specific case, based on Frantz Fanon and decolonial theories (Arturo Escobar; Rita Segato; Walter Mignolo), the text aims to contribute to the anthropological debate about the most varied forms of resistance. Moreover, they are supported by the historical plurality and the shared struggle for the defense of the territory.

 

Key words: Indigenous quilombo, resistance, territory, Tiririca dos Crioulos 

 

 

Introdução

 

A Tiririca dos Crioulos é uma comunidade rural do sertão do rio São Francisco pernambucano, município de Carnaubeira da Penha, constituída por 49 famílias. No ano de 2010, a comunidade passa a se autoidentificar como um ‘quilombo-indígena’, no contexto da luta Pankará, seus vizinhos e parentes, pela regularização da Terra Indígena (TI) denominada Serra do Arapuá. Surpreendem os poderes locais, as agências estatais e seus aliados históricos com a criação da classificação identitária heterodoxa. São quilombolas? São indígenas? A resposta dada por Verinha, liderança e professora da comunidade, explica a categoria atribuída à comunidade: “é um negro com traço de índio, é um índio com traço de negro, essa é a relação. Depois de tanto o povo perguntar, eu resumi assim: somos um quilombo-indígena e ficou”[1].

A síntese pragmática à questão da Tiririca é na realidade a expressão de uma insurgência político-epistêmica calcada na resistência cotidiana ao longo de todo o século XX chegando aos dias atuais. Em grande medida, a mobilização junto aos Pankará é engendrada como estratégia de defesa coletiva perante o contínuo processo de racismo atravessador da história desses grupos étnicos na Serra do Arapuá. Com efeito, se destacam os sucessivos esbulhos de terras praticados secularmente pelos fazendeiros da região. A racialização da diferença, neste contexto, é uma distinção colonial bem precisa de negros e indígenas em relação à oligarquia regional.

Nossa inserção no sertão do São Francisco ocorre em fins da década de noventa por meio do trabalho indigenista de assessoria às reivindicações territoriais dos povos da região e na formação de professores/as indígenas[2]. Embora familiarizados com essa complexidade de atores, grupos sociais e agências presentes na região, conhecemos a comunidade Tiririca dos Crioulos no ano de 2010 durante o processo de regularização da Terra Indígena Pankará.

O povo Pankará havia, desde a década de 1940, reivindicado a regularização jurídica do seu território, a Serra do Arapuá, ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista do Estado brasileiro à época. O que os Pankará não contavam era com a demora da regularização, que só veio a ser atendida em 2009, ano da criação do Grupo Técnico para Estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (GT) instituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai)[3]. Na ocasião atuávamos diretamente no processo por duas vias: a oficial, enquanto antropóloga-coordenadora do GT, e no controle social como assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Nossa incursão no campo ocorreu entre os anos de 2010 e 2013 e o período deste trabalho correspondeu, também, à pesquisa de doutoramento de uma das autoras do presente texto[4].

O tempo de militância ao lado dos Pankará nos levou a uma hipótese descartada: o processo ocorreria sem muitas surpresas, ao menos do ponto de vista das dinâmicas sociopolíticas do povo. Durante a discussão dos limites da Terra Indígena com representantes de todas as aldeias situadas na área reivindicada, uma circunstância peculiar surge demandando a reorganização metodológica do GT.

Um prólogo da situação social, geradora do deslocamento de nossa compreensão acerca do campo empírico, pode ser contado no encontro com duas comunidades: a comunidade do Massapê e a comunidade da Tiririca dos Crioulos, ambas detentoras de histórias singulares na Serra do Arapuá. Até aquele momento, tais grupos não estavam articulados politicamente à organização indígena para discussão da regularização territorial. No entanto, era do nosso conhecimento a certificação das duas comunidades pela Fundação Cultural Palmares[5] como ‘Comunidades Remanescentes de Quilombos’[6]. Diante disso, iniciamos a pesquisa etnográfica com as situações descritas brevemente nesta introdução.

Primeiro vamos nos deter à comunidade do Massapê. O Grupo Técnico se dirigiu à reunião agendada sabendo que iria tratar de uma comunidade quilombola em função do processo administrativo de levantamento fundiário em curso pelo Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)[7]. O encontro seria um entendimento prévio da situação jurídica para encaminhar a discussão das fronteiras territoriais. Logo no início da reunião, contudo, a comunidade se autodeclara pertencente ao povo indígena Pankará. Reclamam seu pertencimento de “filhos da Serra do Arapuá”, descendentes dos membros fundadores da comunidade, migrantes do alto da Serra (aldeia Gonzaga) para o sertão (denominação local para as regiões baixas da Serra) na primeira metade do século XX. Mobilizam o discurso do parentesco ao afirmar pertencimento às famílias Limeira e Caxiado. Os pajés Pedro Limeira e Manoelzinho Caxiado, importantes lideranças político-religiosas presentes na reunião, reiteraram a posição da comunidade do Massapê. O desfecho foi a deliberação conjunta da suspensão da certificação de quilombola e a inclusão da área do Massapê na Terra Indígena Pankará.

Em relação ao encontro com a comunidade Tiririca dos Crioulos, chamou a nossa atenção não haver demanda formalizada ao Incra para a regularização do território, o que não era esperado por se tratar de uma comunidade com nível consistente de informação, sugerindo ao GT algum interesse em resolver a situação jurídica de sua posse via Terra Indígena. Por conseguinte, o povo Pankará indicava a comunidade pertencente à sua organização social; os argumentos para tal assentavam-se na relação de parentesco e no uso comum de espaços considerados sagrados. Ocorre que os critérios apresentados por lideranças Tiririca conduziram à recusa da inclusão de sua área territorial no perímetro da Terra Indígena durante a consulta pública. Compartilhar de uma mesma territorialidade não se confirmou como critério preponderante; no pensamento das lideranças, a “terra dos crioulos” abrange uma história dupla, repleta de memórias da resistência negra na localidade; portanto, quilombola. Desse modo, as lideranças Pankará e Tiririca encaminham conjuntamente um pedido oficial ao Incra para abertura do processo de regularização das terras da comunidade na categoria ‘remanescentes de quilombos’.

Apoiados na antropologia brasileira das populações indígenas e quilombolas – com enfoque analítico articulador das categorias território, história, resistência –, e na perspectiva teórica da colonialidade do poder, formulada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, o presente texto debruça-se sobre as relações entre indígenas e quilombolas na Serra do Arapuá. Buscamos entender, na formação social do quilombo-indígena, como esses atores mobilizam seu capital histórico/simbólico para, a partir das suas lutas, modificar a realidade de exclusão racial imposta por determinadas instituições sociais.  

A pesquisa etnográfica na qual baseamos este artigo demonstrará que a criação de uma categoria identitária heterodoxa, além de representar uma aprendizagem contra- hegemônica  ̶   no sentido dado por Juan García “ desaprender lo aprendido para volver a aprender”[8]  ̶ , questiona os processos de construção da diferença operados nas vias legais de um Estado monista. Atinente a esta alteridade do quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos, existe uma crítica a colonialidade exercida pelo direito estatal na criação de classificações estanques e a sua incapacidade de promover políticas públicas e direitos territoriais para territorialidades específicas.

            Para abrir o diálogo antropológico, o artigo inicia com uma breve caracterização da Serra do Arapuá, e dos grupos étnicos originários desse território tradicional. Em seguida, é abordado o histórico de ocupação da comunidade Tiririca, com foco nas lutas empreendidas na defesa do território, e igualmente nos processos decisórios das comunidades indígena e quilombola acerca das fronteiras territoriais. A conclusão problematiza os desafios para o reconhecimento de novas territorialidades plurais no contexto do Estado brasileiro.

 

A comunidade Tiririca dos Crioulos, os Pankará, a Serra do Arapuá

 

A Tiririca dos Crioulos está situada ao “pé” da Serra do Arapuá, Terra Indígena Pankará, circunvizinha a duas aldeias indígenas: aldeia Riacho do Olho D’água (ao norte), aldeia Olho D’água do Muniz (a leste). À vista do nome das aldeias, a Serra do Arapuá é citada em documentos históricos como um “oásis no Sertão[9]. Possui uma altitude aproximada de 900 metros compondo o conjunto dos principais brejos de altitude no estado de Pernambuco. Daí o grande valor econômico e ambiental, tornando-se área de disputas fundiárias. Os brejos de altitude são ilhas de floresta úmida, encraves da Mata Atlântica nordestina em pleno semiárido[10].

A população da Tiririca é de 196 pessoas organizadas em 49 famílias nucleares, de acordo com o censo demográfico de 2013 - realizado por ocasião dos estudos de identificação e delimitação do território remanescente de quilombos. As famílias nucleares e as extensas agrupam-se no entorno da residência de um ancião/anciã formando cinco localidades espacialmente distribuídas ao longo da estrada principal do quilombo. A área total identificada pelo GT/Incra é de 2.136 hectares[11]. O levantamento fundiário concluído em 2013 identificou a ocorrência de um imóvel de ocupante não quilombola. Trata-se de uma fazenda de médio porte detentora do único açude de água da localidade. Registrada em cartório no nome de uma das ditas “famílias tradicionais” do município de Floresta, a fazenda representa um encalço para as comunidades cujo tema abordaremos adiante.

Já a população Pankará, indicada no último censo feito pela organização das professoras indígenas no ano de 2010, soma 4.870 pessoas distribuídas em 53 aldeias situadas nas três regiões da Serra do Arapuá (sertão ou “pé” de serra, agreste e chapada). A comunidade Tiririca está incluída no referido censo, pois como iremos explorar neste artigo, a Serra do Arapuá, no entendimento dos indígenas e quilombolas, é um território compartilhado, concepção divergente da sua condição jurídica de Terra Indígena e Terra de Remanescentes de Quilombo.

No tocante à organização da comunidade Tiririca dos Crioulos, há uma trajetória de mobilização interna e com o entorno, desde a época das primeiras famílias fundadoras do quilombo. Para a compreensão das lutas mais contemporâneas, evidenciamos a importância da década de oitenta para a politização da comunidade. Período das mobilizações pela redemocratização do país, lideranças da Tiririca ensejam articulações orgânicas com movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores/trabalhadoras rurais e grupos da Teologia da Libertação (pastorais da Igreja Católica). Esse campo de relações possibilitou às lideranças o conhecimento da emergência étnica de várias comunidades quilombolas na região do entorno, especificamente ao final dos anos noventa. Essas comunidades integram uma rede de sociabilidade com a Tiririca na economia, nos festejos, nas relações de parentesco, entre outros aspectos da vida social. Identificam assim semelhanças consoantes à caracterização social, histórica e cultural respaldada no artigo 68-ADCT da Constituição Federal de 1988, levando-os a autodeclararem-se quilombolas nos termos da categoria jurídico-política instaurada pelo Estado.

No ano de 1998 é criada a Associação dos Remanescentes do Quilombo da Tiririca dos Crioulos, o que lhes garante o acesso a informações sobre direitos territoriais e políticas públicas junto ao movimento quilombola. Seguindo os passos do reconhecimento estatal, acionam a Fundação Cultural Palmares e adquirem o título de ‘Comunidade Remanescentes de Quilombos em 2008’[12]. A titulação representou um reconhecimento do Estado à identidade quilombola, mas, por outro lado, sem repercussões administrativas para a regularização territorial, em razão de ser responsabilidade de outro órgão, no caso o Incra.

A mobilização conjunta, Tiririca - Pankará, visando a instauração do procedimento administrativo em relação ao território, só veio a ocorrer na chegada da Funai à região, no ano de 2010, para deflagrar o processo de regularização da Terra Indígena Pankará. Por serem áreas contíguas, havia uma preocupação relativa à presença dos fazendeiros nas áreas de fronteira entre as duas comunidades com a manutenção das relações de violência e patronagem. O Incra instaura o Grupo Técnico para estudos de caracterização, identificação e delimitação do território quilombola Tiririca dos Crioulos no ano de 2012, tema detalhado adiante.

Depois de mais de meio século de resistência na Serra do Arapuá, encobertos como trabalhadores rurais, o povo Pankará obteve o reconhecimento do Estado brasileiro. A Serra do Arapuá dá nome à Terra Indígena identificada oficialmente[13] em 15 mil hectares. A delimitação oficial englobou as três microrregiões imprescindíveis para a reprodução física, cultural e ambiental. São elas: região baixa, caracterizada pela vegetação caatinga, denominada localmente de sertão ou “pé” de serra; a região intermediária é denominada de agreste e o platô denominado de chapada. As duas últimas de clima frio e úmido, com nascentes de água. O levantamento fundiário feito em 2016 (GT/Funai) identificou a ocorrência de 106 imóveis de ocupantes não-indígenas incidentes na TI Pankará da Serra do Arapuá.

Conforme analisado em trabalho anterior[14], a presença não-indígena é procedente de um modo de ocupação específico dessa região baseado na divisão de terras em lotes familiares. O acúmulo de poder e prestígio das famílias ditas proprietárias estava condicionado tanto na concentração de lotes desmembrados entre herdeiros, quanto no número de escravizados/as. No exame minucioso do levantamento fundiário, constatamos a vigência de tal padrão de ocupação além de observados outros modos agregados ao longo dos anos.

Nesse cenário de franca presença contraditória à ocupação tradicional, o risco de morte das lideranças pela demarcação territorial se torna inerente o projeto de autonomia do povo se apresenta vulnerável. Os agentes da oposição aos Pankará integram, em primeiro plano, as famílias radicadas secularmente nos principais postos dos poderes Executivo (municipal), Legislativo (nas três esferas) e, em segundo plano, as famílias de posseiros subordinadas às primeiras. Nem todos os membros da elite fixaram residência na Serra, embora todos exerçam o controle sobre os Pankará e a Tiririca via relações patronais, especialmente arrendamento; as segundas não possuem poder econômico significativo: habitam na Serra como caseiros, com a posse de pequenas áreas e do matrimônio com os/as indígenas.

A constituição dessa malha fundiária se estabelece como própria metodologia de hostilidade perpetrada contra indígenas e negros; extrapola as relações na Serra. O racismo instituído vincula-se às relações com o município de Carnaubeira da Penha, direcionando o fluxo de comércio e serviços dos moradores da Serra para a cidade de Floresta. Todavia, dentro de um quadro histórico mais amplo, o município de Floresta, cuja fundação tem início no século XVIII, é o ponto de partida para a análise da geopolítica responsável pelo aparato político-administrativo do esbulho das terras indígenas e a escravização da população negra. As frações das elites agrárias espraiam-se para os municípios do entorno, como projeto de poder, e exercem influência no contexto regional, não somente em Carnaubeira da Penha.

Carnaubeira é citada nas fontes históricas dos séculos XVIII e XIX como o antigo “Sítio da Penha”, área doada aos índios Umãs pelo rei de Portugal  ̶  objeto de disputa entre indígenas e a Câmara Legislativa de Floresta[15]. Foi distrito do município de Floresta até ser elevada a município autônomo no ano de 1991. Em termos demográficos, a população é de 11.782 indivíduos e o contingente mais expressivo está na zona rural, totalizando 9.800 pessoas, segundo último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Trata-se de um município composto majoritariamente de indígenas e quilombolas, no qual os povos Atikum (Serra do Umã), Pankará (Serra do Arapuá) e o quilombo Tiririca somam, aproximadamente, 9.600 pessoas, ou seja, mais de 80% da população municipal[16].

No panorama socioeconômico, Carnaubeira da Penha representa uma das principais zonas produtoras do chamado “polígono da maconha” no sertão de Pernambuco. Subtende-se a presença de violência armada: seja por policiais militares, seja por traficantes. Apesar deste aspecto ser importante para situar os tipos de violências presentes no campo empírico, Carnaubeira, antes de tudo, foi reduto do mandonismo[17], da violência física e simbólica, da exploração da terra e das pessoas. Estes são alguns conceitos qualificadores do padrão de poder colonial/capitalista/eurocêntrico vigente nos sertões nordestinos.

O encontro entre indígenas e negros no sertão do São Francisco acontece, como é possível deduzir, nessas tramas da história. O rio São Francisco e a vastidão de terras sertanejas atraíram uma frente expressiva de colonização originando um contexto intersocietário diverso. Foi o período da fixação das famílias descendentes da Casa da Torre acompanhadas de novos colonos, ambos favorecidos pela Lei de Terras (Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850), a lei responsável pelo confisco das terras indígenas. A população negra chegou à região escravizada para trabalhar nas fazendas de gado. Ao olhar de historiadores debruçados sobre os inventários das famílias abastadas, havia um contingente majoritário de proprietários de escravos[18].

No Censo Imperial de 1872, a respeito destas paragens do São Francisco, há a descrição dos tipos de atividades exercidas de forma predominante pela população escravizada: agricultura, serviços domésticos, trabalhos de fiandeira, vaqueiro, curtidor de couro[19]. Evidenciamos esse dado a fim de destacar a particularidade dos mecanismos de controle e coerção praticados na região, uma vez que a organização do trabalho diferia totalmente daquele aplicado na plantation dependente de trabalhadores vigiados. No Sertão, a reprodução das relações de dominação para manutenção da servidão fora forjada no deslocamento da força de trabalho ao âmbito das relações domésticas, ou seja, na sujeição da subjetividade.

Comunidades negras rurais começaram a se formar, na condição de libertas juridicamente, nas últimas décadas do século XIX, decorrente do Fundo de Emancipação, empregado entre 1872 e 1888. Estabeleceram-se no entorno das propriedades de seus antigos donos assegurando a manutenção de uma rede de sociabilidade movimentada em virtude dos “batizados, casamentos e festejos cristãos permitidos por seus proprietários, e pela convergência entre a demanda de trabalho oferecida e o tipo de ofício que a própria escravidão os imputou: vaqueiros, agricultores, trabalhadoras domésticas”[20]. Ainda de acordo com a historiografia desse período, negros, indígenas, camponeses e pobres mantiveram-se trabalhando nas fazendas da região cooperando entre si na compra ou posse de pequenos lotes de terra para uma vida mais autônoma no campesinato.

            Apesar da presença indígena e negra ser maior demograficamente no município de Carnaubeira, atualmente, naquilo que reflete as relações de poder essa maioria populacional ainda não coloca estas populações em vantagem. Os poderes Executivo e Legislativo de Carnaubeira da Penha e Floresta são comandados pela elite agrária local, a contar da época colonial. Um estudo de doutoramento sobre a trajetória social de proprietários de terras em Floresta esclarece, por meio de dados coletados em documentos judiciais e cartoriais dos séculos XVIII e XIX, a assunção dos membros das ditas “famílias tradicionais” em “categoria socialmente dominante e como membros ativos da burocracia administrativa local”[21]. Se analisarmos esse padrão de poder a partir de Frantz Fanon[22], não é, senão, uma modalidade da divisão em compartimentos do mundo colonial. Vejamos

 

O perfil dos componentes das Câmaras Municipais, desde a sua instituição, é caracterizado pela presença maciça de co-proprietários de terras, de co-senhores de escravos e criadores de gado. Acompanhando-se pelos nomes de seus membros, alguns se revezando, pelas alianças estabelecidas, constatamos que estava presente todo o segmento de « homens bons » da localidade, pertencentes às famílias tradicionais. Dos dezoito vereadores, nas três legislaturas, a maioria tinha algum grau de parentesco ou amizade e/ou assumiu na Câmara por mais de uma vez, potencializando, assim, a influência dos grandes proprietários e seus descendentes[23].

 

Por conseguinte, identidades históricas foram produzidas nesse Sertão, e à base de uma ideia de raça foram associadas à natureza dos papeis e dos lugares da nova estrutura de controle da terra e do trabalho. Na conceção de Aníbal Quijano, “raça e divisão do trabalho foram estruturalmente associados e reforçaram-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era, necessariamente, dependente do outro para existir ou para mudar”[24]. Na esteira da invenção eurocêntrica das ditas “famílias tradicionais” funda-se a violência social: a imposição de um colonialismo regional urdido há séculos. Afinal, a destruição de um mundo histórico, a partir da classificação racial, não seria imaginável fora da violência da dominação colonial[25].

A teoria da colonialidade do poder, então, nos possibilita um entendimento das relações de dominação constitutivas do contexto intersocietário em análise, igualmente das formas de resistências engendradas por indígenas e quilombolas para a composição de alianças políticas, religiosas e de parentesco. Um padrão de resistência “na qual o poder está na comunidade e não no Estado ou em qualquer outra instituição administrativa equivalente” conforme analisa Walter Mignolo sobre a “identidade na política”, ao invés das discussões que partem das “políticas de identidade” [26].  Interessa-nos esse tipo de resistência no lugar[27], capaz de reconfigurar as identidades sociais e produzir novas pluralidades históricas no sertão do São Francisco, tal qual se presencia na emergência do quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos.

 

Histórico da ocupação territorial na Tiririca dos Crioulos: luta pela terra e racialização da diferença

 

Olha, tinha dois lugares aqui em Carnaubeira da

Penha tido como o inferno,

 terra de satanás: Massapê e Tiririca.

 Esses dois lugares, quando se falava, tinha uma diferença(...)

uma diferença que a gente sente...

Os negros da Tiririca eram os discriminados[28].

 

A formação social da comunidade é narrada em dois momentos históricos, o tempo de Pinto Madeira e Helena seguido do tempo de Manoel Miguel e Izaura. Desde o início desta pesquisa, temos acompanhado lideranças mais jovens e professoras da comunidade na articulação dos anciãos/anciãs em busca da reconstrução do passado, do reavivamento das memórias coletivas:

 

A comunidade é muito antiga e os mais novos se perderam nessa história. Eu estou tentando historiar por aí na vila... aqui fazendo essa pesquisa com os mais velhos para entender bem direitinho a luta deles, porque assim, se não pesquisa se perde. Tem muitas coisas importantes a saber[29].

 

Durante a incursão etnográfica no quilombo-indígena, entre 2010 e 2013, foi valioso o apoio das lideranças Roberto e Verinha na interlocução da pesquisa. São irmãos, filhos de Manoel Miguel Pankará e Izaura da Tiririca, netos de Pedro Canuto; ambos representam o quilombo-indígena no Conselho de Lideranças da Organização Social Pankará. São as lideranças indicadas pela comunidade para estarem à frente da articulação política com o Estado brasileiro nos assuntos de interesse comunitário. As relações de confiança e parceria estabelecidas em campo contribuíram para qualificar nossa escuta etnográfica e compreensão da realidade empírica. Além das entrevistas, conversas nos terreiros das casas, caminhando entre as veredas que ligam o território, os dados etnográficos foram acessados durante oficinas de história oral e outra de mapeamento participativo envolvendo toda a comunidade[30].

Por intermédio das narrativas dos/das mais velhos/as identificou-se quatro personagens centrais na composição da história de origem da Tiririca: Pinto Madeira (também pronunciado Plínio Madeira), Helena, Pedro Canuto e Izaura. Contudo, havendo algumas incertezas quanto ao Pinto Madeira e Helena: quem eram exatamente, se negros ou donos de terra. Pedro Canuto é um personagem conhecido, negro liberto, chegou à Tiririca provavelmente nos primeiros anos do século XX. Era o pai de Izaura, a jovem negra que estabeleceu laços de matrimônio com o índio Pankará Manoel Miguel. Conhecido por “Marinheiro”, Manoel Miguel chega à Tiririca na década de quarenta levando adiante sua liderança político-religiosa na comunidade até a sua morte, em 1998. Esse casamento é marco simbólico na atual aliança Pankará e Tiririca.

Repuxar os fios da ancestralidade nas oficinas implicou em desafios metodológicos para lidar com as subjetividades. Retomar uma historicidade ocultada pela colonialidade afetou os sentimentos do grupo. Sabemos que para a etnografia não importa, objetivamente, a identidade de Pinto Madeira e Helena; o aspecto relevante reside na mobilização da memória e na produção de narrativas geradoras dos vínculos de afinidade. Posto isso, vamos apresentar, de forma sucinta, as versões mais recorrentes da origem do quilombo-indígena.

Uma narrativa menciona a chegada de Pinto Madeira e Helena à Tiririca, os primeiros moradores. Nessa versão, a comunidade não consegue precisar qual tipo de vínculo os ligavam, mas compartilham a memória de serem os responsáveis pelo registro da terra no único cartório da região, situado na cidade de Flores. Chegaram ao local porque na região de Mirandiba, município vizinho, existiam “pastos bons”. Posteriormente, as terras foram doadas ao Pedro Canuto e herdada por sua filha, Izaura. Quando o índio Manoel Miguel, este se casa com Izaura e juntos assentam moradia na Tiririca porque “os negros da Tiririca possuíam essa terra, enquanto a Serra do Arapuá já estava dominada pelos brancos[31].

Na segunda versão Pedro Canuto é o epítome descrito como vaqueiro de Pinto Madeira. Migrou do estado do Ceará, região de Porteiras, chegando na Tiririca em fins do século XIX para adquirir as terras, mediante compra. O episódio seguinte de sua vida reporta ao casamento com uma índia da Serra do Arapuá, retratando o início de uma genealogia de casamentos entre as duas comunidades. Dentre os filhos e filhas desta aliança matrimonial, destaca-se Izaura. Ela veio a tornar-se mulher do índio Manoel Miguel, da Serra do Arapuá, na década de quarenta.

Historiar os processos de territorialização provocou na comunidade uma necessidade de consensos estratégicos sobre a retomada do território, pois a despeito da origem de Pedro Canuto, transigem no fato de a terra da Tiririca ter sido documentada no cartório de Flores em favor deste e de seus descendentes. A crença na origem comum em Pedro Canuto e Izaura reflete na crença de um território de herança para usufruto coletivo

 

A história que a gente sabe é que isso aqui era deles. Era registrada a posse dessa terra. Tem um documento no nome deles, como eles conseguiram, não sei. Papai teve acesso a esse documento. Como já tinha as suas atividades para cuidar, nunca se interessou para ficar com a guarda desse documento. Agora é registrado, a terra é de todos. Provavelmente alguma pessoa que não mora na Tiririca ficou com ele. Acho que não deu importância, mas esse documento era do tempo que aqui pertencia a Flores, esse documento foi registrado[32].

 

A contar da origem do quilombo até os principais momentos de luta pela terra, há recorrência de ações de má-fé dos fazendeiros da região. Consoante aos relatos, famílias abastadas se apossaram de parte do território “passando a cerca nas terras dos crioulos[33]. O esbulho gradativo levou aos enfrentamentos, na década de quarenta, compondo um mosaico de conflitos diretos, intermitentes

 

Aqui teve uns problemas pesados para nós. Terra de preto e índio ninguém respeita. Foram cercando, cercando e nós tentando segurar. Eles sabiam que tínhamos documento e por isso não avançaram mais. A gente escuta sobre virem tentando alcançar essa terra lá, quando chegou lá nesse local o cara olhou e disse: não, o documento do “neguim” é bem feito. Por isso a gente sabe do documento, mas se perdeu, nossa geração ninguém viu. Dizem que está no cartório lá de Flores[34].

 

A época das primeiras pilhagens das terras da comunidade corresponde com a chegada do Pankará Manoel Miguel na Tiririca, cuja presença desvenda variados episódios da vida do grupo em razão de sua liderança. Manoel Miguel era membro de uma família ligada aos rituais na Serra do Arapuá, detentora do saber da medicina tradicional. Dizem que os Miguel prestavam atendimento em toda a região quando solicitados e, ao lado de seu irmão, Antônio Miguel[35], fez-se presente nos processos de reconhecimento étnico dos seus vizinhos Atikum por ser grande conhecedor do Toré[36]. Ao passar do tempo, diferenciou-se dos seus parentes indígenas porque “começou a trabalhar com mesa alta e o Toré é da Jurema, a Jurema é do chão[37]. Esse tipo de saber conduziu a uma vida de grande mobilidade explicando em certa medida o casamento de Manoel Miguel e mais dois irmãos com mulheres da Tiririca.

É necessário focarmos na história do casal Manoel Miguel e Izaura, à luz das relações políticas, rituais e econômicas na Serra do Arapuá, e nas resultantes desse casamento nos dias de hoje. Tão logo se casaram, Manoel Miguel comprou um lote de terra contíguo ao território original da Tiririca ampliando o espaço de uso coletivo. Construiu a primeira casa de alvenaria na comunidade denominada de ‘Casa Grande’; após a sua morte, foi destinada ao uso comunitário para reuniões e cultos da Gira

 

Meu pai nos ensinou que é melhor todos terem pouco, do que um com muito e outros sem nada. A lição de Marinheiro para nós foi a partilha. Desde pequenos, lá em casa, se aprendeu a dividir com todos. E assim papai fez na vida dele também. A terra que ele comprou é da comunidade e a casa dele de tijolo, esse sempre foi um desejo, ele pediu para nenhum filho morar, porque a casa era grande e deveria servir a todo mundo e assim nós fizemos[38].

 

Aqui na Tiririca a gente nunca teve essa tradição de linha, os linheiro como chamam. A linha é assim: cada um tem seu pedaço de terra. Aqui não, eu planto aqui, planto do outro lado, planto em todo canto. Todo mundo planta em todo canto. Um vizinho conversa com outro e se ajuda. Isso é uma diferença nossa[39].

 

 

Em contraste às concepções e práticas relatadas acima, fazendeiros da região não desistiram de investir na imposição da propriedade privada. Utilizaram de artimanhas perversas contra a moral da comunidade acusando-os de “ladrões de bois” para exigir lotes de terra como pagamento pelo roubo inexistente. Em um contexto de violência intumescida, a memória denuncia: “Nós sabemos que éramos vistos dessa qualidade inferior porque assim contam os mais velhos[40]. Relações menos hostis sobrevieram por intermédio de Marinheiro à custa da posição de “homem da ciência indígena”, conhecedor da medicina tradicional. Não obstante, a condição inventada pelo racismo de “inferior” foi o argumento legitimador das várias tentativas de esbulho do território da Tiririca, várias delas com sucesso. A denúncia das reduções de área territorial do quilombo é atestada, também, pelas lideranças Pankará em conversas durante a pesquisa de campo

 

A luta do povo da Tiririca foi grande mesmo. No tempo de Manoel Miguel teve um conflito por conta das fronteiras de terra lá. Os brancos vão andando as cercas deles e teve uma hora que o povo da Tiririca se organizou, quase deu um conflito feio. É que o velho Manoel Miguel soube lidar com o problema. Mas a gente sabe mesmo, a Tiririca perdeu terra para os brancos[41].

 

O uso de expressões derrogatórias contra a comunidade qualificou o padrão para angariar terras ilegalmente sob a justificativa de estarem fazendo justiça: “eu cresci vendo e ouvindo o povo menosprezar o pessoal da Tiririca, como negros acanalhados, negros fedorentos, negros do pé rachado, negros do beição de aribé, entendeu? Aí essa coisa ficou impregnada”[42]. Conteúdos constrangedores semelhantes a esses emergiram nas oficinas de história oral ao mesmo tempo que possibilitou a ressignificação do racismo. Após análises coletivas, a comunidade compreendeu o uso de má-fé inerente a todos os ataques ao seu território. Cabe recordar uma análise de Fanon[43]: “de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica”.

A usurpação avançou posteriormente em conjunturas de extrema carência econômica de algumas famílias, ocasionada por estiagens, pragas na lavoura, epidemias, entre outros problemas comuns às áreas pobres, levando à necessidade da venda de frações da terra. Diante dessas situações, os adquirentes cercavam uma área maior em relação ao lote negociado

 

Naquele tempo era muito difícil, porque não tinha esse negócio de projeto, de financiamento, se vivia com o que podia. Se deus ajudasse e chovesse era bom, se não era ruim. Os pais de família tinham que vender um pedacinho do terreno para comprar uma semente, um bicho, uma coisa. Só que os fazendeiros passavam a cerca maior, entendeu agora?[44]

 

Depreende-se dos depoimentos, da nossa escuta e convivência com essa comunidade a manutenção de um vínculo histórico balizado em saberes territoriais opostos à lógica instrumental. Ou seja, a luta deflagrada para reconquista das áreas pilhadas e garantia jurídica da posse coletiva é operada na racionalidade histórica. Com efeito, parece justificar as intencionalidades tangentes aos processos decisórios comunitários que motivaram a deliberação por um ordenamento jurídico à parte da constituição como Terra Indígena.

 

Processos decisórios comunitários e o marco jurídico da terra como Remanescentes de Quilombos

 

A Tiririca tem origem na resistência dos negros,

dos descendentes de Izaura e Pedro Canuto que chegaram

aqui nessas terras e trabalharam muito. Depois os índios

chegaram, casaram, se misturaram aqui. Por isso eu digo,

a Serra é dos caboclos e a Tiririca é dos crioulos[45].

 

A memória coletiva da resistência negra é o ponto de partida para compreender por que, durante os trabalhos da Funai para definição dos limites da Terra Indígena, os tiririqueiros tenham afirmado “a Serra é dos caboclos e a Tiririca é dos crioulos”. De um ponto de vista instrumentalista da identidade étnica, seria mais viável a comunidade decidir-se integrar à Terra Indígena, cujo procedimento já estava em curso aliado ao consentimento das lideranças Pankará, se essa fosse a decisão. Cabe lembrar que no ano de 2010 sequer haviam encaminhado solicitação ao Incra para a abertura de processo. Ou seja, “estava à mão” a possibilidade de garantir o direito territorial pela via da política indigenista, e isso não seria obtuso, visto que os tiririqueiros estão dentro dos critérios de pertença do povo Pankará. No entanto, alegaram o seguinte

 

Aqui nós somos Pankará também, é verdade. Tem os filhos de Manoel Miguel. Mas a Tiririca é herança dos negros, de Pedro Canuto e Izaura. Os índios é que foram abrigados na terra dos negros. Por isso, não é correto dizer que essa terra é indígena, porque ela vem da resistência dos negros, por isso é Tiririca dos Crioulos[46].

 

O argumento das lideranças da Tiririca sugere uma agenda política própria sem ceder à pressão da conjuntura instalada pelo órgão indigenista ao tempo que, habilmente, lançam mão das dinâmicas intrínsecas a sua etnicidade. Sob ponto de vista similar, Isabel Castro Henriques[47] alude à indissociabilidade entre história e território quando tratamos dos grupos étnicos, expressa “não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, os outros provindo do imaginário do indivíduo e da sua sociedade”[48]. Diante da inexistência de uma possibilidade jurídica de território que acolha a especificidade da Tiririca, optam pelo marco legal mais próximo “simbolicamente” do seu passado de resistência às violências perpetradas contra o grupo por serem negros

 

Era estranho, eu ficava pensando, porque tem muita gente negra aqui no entorno da Tiririca, e com a Tiririca era diferente, não sei se naquele tempo a Tiririca já tinha o ritual, alguma coisa assim. Os negros da Tiririca é que eram os discriminados. No tempo antigo não tinha esse negócio de cristianismo, ninguém levava os filhos para batizar, tinha essa discriminação também, porque diziam que a Tiririca era terra de animal bruto. Diziam que o pessoal daqui não tinha deus porque não batizava os filhos. Ir para missa só dos anos 1920 para cá. Nos anos 1940, Marinheiro levou a cultura do Toré para a Tiririca e o povo do Toré se reconhecia como caboclo, porque naquele tempo era caboclo que chamava, não era índio. Marinheiro começou o Toré, e isso socializou o povo da Tiririca, veio esse nome de caboclo: “eu sou caboclo aqui de Marinheiro” para amenizar essa história de se chamar de negro[49].

 

Nesse enredo sobre o Toré, reiteram a importância da aliança com indígenas para a continuidade da comunidade e mitigação da convivência forçada ao racismo local/regional. Mas, no depoimento a seguir, vimos o quanto é tangível o protagonismo de seus ancestrais negros na formação social da comunidade. Inclusive, ao lançarem mão deste fato histórico, resguardam a possibilidade de um autogoverno na gestão territorial da área jurisdicionada à Tiririca

 

Quando meu pai chegou aqui na Tiririca, já tinha muitos anos que a comunidade Tiririca tinha se formado. Esse povo negro chegou, trabalhou, resistiu aqui. Depois veio papai em 1940. Então é um território de negro e de índio. Os primeiros que formaram a Tiririca foram os negros, isso a gente não pode mentir. A gente aqui compreende assim, na questão da terra é quilombola, mas na organização, na união, nos rituais, somos um povo só. Porque a gente vive igual, temos os mesmos problemas e pensamos semelhante a forma de resolver[50].

 

Diante do exame detido ao ponto de vista dos tiririqueiros, o Grupo Técnico prosseguiu com a exclusão da comunidade da TI. A participação da Tiririca no GT da Funai passou a orientar-se nas territorialidades específicas na Serra do Arapuá e quatro decisões foram tomadas pelas lideranças Pankará e Tiririca para a construção das fronteiras físicas.

A primeira dirigiu-se ao terreiro antigo de Toré na Serra do Melado. Este passou a pertencer ao território quilombola porque, na explicação do pajé João Miguel, “os índios que fazem os rituais lá são os Miguel”[51]. A segunda decisão lidou com a questão do acesso à água, o açude denominado “açude dos Novaes”. A Serra do Arapuá é abundante de nascentes em relação ao sertão do pé de serra, deste modo arguiram ser “mais justo o açude ficar no quilombo, porque dá mais autonomia para eles, que esta fonte de água fique no território da Tiririca, assim ficam com dois acessos: a nascente do Riachão e o açude[52].  A terceira decisão focou na disputa de uma propriedade registrada em cartório no nome da família Novaes. Quem enfrentaria diretamente a questão? Os tiririqueiros decidiram recuperá-la por ser área tradicional do quilombo. Por fim, decidiram elaborar um ofício ao Incra solicitando a abertura de processo para regularização do território quilombola, no qual argumentam

 

Entendemos ser de extrema importância o Incra tomar as devidas providências quanto a urgente regularização do nosso território tradicional a fim de garantir o nosso direito constitucional e evitar que os ocupantes não-indígenas e não-quilombolas ameacem a nossa paz e segurança. As lideranças Pankará e o GT estão garantindo a nossa participação em toda a discussão que afeta diretamente a vida dos tiririqueiros, pois de nada adiantará a construção coletiva destes limites se o território da Tiririca não for também regularizado e desintrusado. Diante disso, nós do quilombo da Tiririca reivindicamos em caráter de urgência a regularização do território tradicional da tiririca[53].

 

No ano de 2012 conseguem a instauração do GT para regularização do território quilombola, ocasião em que os Pankará são convidados a integrar o Grupo até a conclusão dos trabalhos. Atualmente o território de uso comum ainda se encontra sem conclusão pelas providências legais. As etapas seguintes previstas na legislação, a saber: levantamento fundiário, indenização aos ocupantes não quilombolas, registro cartorial da terra em nome da Associação Quilombola, não foram levadas a cabo pelo Incra devido aos solavancos da democracia brasileira. O governo do presidente Jair Bolsonaro é marcado por um obscurantismo político e de negação explícita dos direitos constitucionais destas coletividades[54]. Apesar disso, a comunidade tem conseguido resguardar a posse das áreas de trabalho coletivo na agricultura de subsistência, criação de animais de pequeno porte, além dos quintais produtivos quando não há longas estiagens.

 

O Quilombo Indígena e as lutas em perspectiva com o povo Pankará

 

E a gente queria se fortalecer, a gente queria Tiririca junto aos Pankará.

Essa forma própria da Tiririca de ser que também,

na sua história, na sua prática diária,

tem a forma de fazer e ser Pankará[55].

 

 

O termo “quilombo-indígena”, em uma definição sucinta, consiste na expressão de uma territorialidade específica fundada nas relações de parentesco, em cosmologias compartilhadas e na aliança política entre o povo Pankará e a Tiririca dos Crioulos na luta pelo território e autonomia política. Foi “criado” pela professora Verinha em face de muito estranhamento, sobretudo quando se apresentavam nos encontros fora da comunidade dizendo-se indígenas e quilombolas

 

No movimento quilombola eu participei de umas oficinas e ganhei uma bolsa com aquele slogan de quilombola. Então, quando a organização Pankará me elegeu como coordenadora de um dos núcleos de educação da Serra do Arapuá, eu passei a fazer parte da gestão das escolas Pankará. Um dia, fui para um encontro de educação escolar indígena no município de Pesqueira e tinha gente que vinha me perguntar, olhando para minha bolsa: você não é quilombola? Eu tinha que explicar a história do parentesco com os Pankará, da luta pela terra. Todo mundo estranha. Dona Valdeci de Itacuruba [liderança do quilombo Poço dos Cavalos] me disse: ó Verinha, será que isso não vai atrapalhar? Ou você é quilombola ou você é indígena. Eu disse: não dona Valdeci. Tem que entender, porque a gente não pode nascer só de uma mãe, ou só de pai, não tem filho só de um. E a Tiririca nasce de dois, então é indígena e é quilombola. É um negro com traço de índio, é um índio com traço de negro, é essa a relação. Depois de tanto o povo perguntar eu resumi assim: somos um quilombo-indígena e ficou[56].

 

O quilombo-indígena vai se constituindo assentado em lembranças de violência racial tanto quanto em sua resiliência ao lado dos indígenas, resguardadas as diferenças culturais. Como argumenta Quijano[57], a razão histórica, embora subordinada à razão instrumental do Estado-nação, existe na resistência dos povos e grupos sociais subalternizados pela colonialidade e define um tipo de poder. Acionam um movimento mais amplo, desde os saberes territoriais, as cosmologias, as redes de solidariedade, os vínculos afetivos entre as pessoas e com o lugar, para caracterizar a retomada das lutas outrora interrompidas, entre os anos de 1990 até 2010, diante da ausência absoluta do Estado e o aumento da violência pelo narcotráfico na região. 

No processo de territorialização mais recente, iremos abordar as principais estratégias empreendidas para a afirmação do quilombo-indígena e defesa coletiva do território ao lado dos Pankará. A primeira delas faz referência à retomada da memória referente às políticas de aliança envolvendo a autoproteção e a prática do Toré no tempo dos mais velhos, nas décadas de quarenta e cinquenta. Movimento com repercussão na aproximação das comunidades para além das relações entre seus líderes. Ao rememorar, por exemplo, o episódio da proibição de acesso a água imposta à família do pajé Pedro Limeira, deslindam importantes mobilizações de apoio mútuo no contexto de obliteração persistente

 

Essa aliança que sempre teve entre Tiririca e Pankará fortaleceu muito a cultura do Tiririqueiro. Desde o tempo de Manoel Miguel, lá pelos anos 40, 50, 60 os caboclos lá da Cacaria [aldeia da Serra do Arapuá] apoiam a gente aqui, porque naquele tempo chamava era caboclo, não falava índio. Era Luiz Limeira, Zé de Olímpio, o velho Pedro Limeira na época era moço. Esse pessoal nunca abandonou a Tiririca. Umas quatro vezes por ano tinha a visita do povo da Cacaria na Tiririca e da Tiririca na Cacaria. No tempo que teve lá em cima os problemas com os Limeira, que os donos das terras não deixavam eles circularem na serra, a Tiririca sempre foi porta aberta, eles passavam por aqui para chegar nos outros cantos. Tinha aquele apoio porque faziam junto os rituais[58].

 

Antes da chegada de Manoel Miguel ao quilombo, a religião era o catolicismo e a umbanda. Os trabalhos ocorriam em casa, mas com ressalvas, pois não eram bem-vistos entre algumas pessoas da própria comunidade temerárias de serem chamadas de feiticeiras pela população do entorno. Manoel Miguel, de certa forma, reconfigura esse cenário. Como dizem, ele “traduziu” o Toré e a Umbanda para a Gira. Atualmente a tradição religiosa na Tiririca é uma reelaboração do ritual da Umbanda, do Toré indígena e do Catolicismo Popular.

Apesar da violência ser um aspecto muito predominante na oralidade, estratégias de vida foram mobilizadas graças aos vínculos rituais-religiosos e de parentesco.  Até o ano de 1989, era sistemático o fluxo entre as comunidades situadas na região do Sertão e o Alto da Serra para as práticas rituais. Um símbolo demarcador dessa relação religiosa é o maracá[59] de Amélia Caxiado. Mulher da ciência Pankará, foi doutrinada pelos índios Tuxá de Rodelas, sertão do rio São Francisco baiano, nas décadas de trinta e quarenta e sua ciência fora transmitida para seu sobrinho, o pajé Manoelzinho Caxiado. Porém, seu maracá foi dado em vida para Manoel Miguel, sendo autorizada a utilização nos rituais da Tiririca. No presente, seu filho Roberto assumiu a liderança religiosa tornando-se o guardador desse objeto ritual

 

Madrinha Amélia era uma mulher de muita ciência e ela sabia as pessoas certas para confiar o maracá dela. Porque o maracá você sabe, é para chamar as forças encantadas e o dela era forte. Só uma pessoa com o conhecimento dela podia manusear aquele maracá. E o velho Manoel Miguel era muito da confiança dela. Esse pessoal da Tiririca tem o ritual deles de negro, que é a Gira e tem o Toré também. A religião dos índios e dos negros sempre foi discriminada. Assim, discriminada para o branco, entre nós aqui não. Então se minha madrinha achou que era para ficar na Tiririca é porque tem que ficar lá. Está na Tiririca está em nossa casa não é mesmo? Porque aqui é tudo parente mesmo[60].

 

Por “serem tudo parente” e “terem o mesmo ritual o quilombo-indígena ganhou força de enunciação quando o prefeito de Carnaubeira da Penha, membro das ditas “famílias tradicionais” na localidade e antagonista histórico dos Pankará, usou do seu posto de chefe do Poder Executivo municipal para violar os direitos da comunidade Tiririca.  O fato ocorreu no ano de 2010, quando o prefeito tomou ciência da incorporação da Tiririca no Grupo Técnico para os estudos de regularização da Terra Indígena. Contrariado, fechou a única escola de educação básica da comunidade[61], cujo feito as lideranças compreendem como um ataque à renovação da aliança política

 

A prefeitura fechou a escola quando soube que a gente estava aliado dos Pankará. No GT da Funai, quando veio a cacica Dorinha e as outras lideranças todas, a gente contou das nossas dificuldades, até da alimentação na escola. O município não mandava merenda porque é lugar de negro, as crianças comiam porque eu trazia da minha casa. Então, Dorinha e Luciete, se indignaram com nossa situação e passaram a nos ajudar. A gente aderiu esse movimento junto aos Pankará para essas crianças terem uma assistência melhor. Em 2010 a escola passou a funcionar na Casa Grande, antiga casa de meu pai. Depois a gente achou errado essa escola, aqui dentro do quilombo, fechada. Até porque, o terreno foi doado por meu pai. Ele não doou para prefeitura, e sim para a comunidade, para construir uma escola para a comunidade. Com apoio dos Pankará reabrimos o prédio escolar e voltamos os alunos para lá. Hoje o governo do Estado assumiu e é escola indígena administrativamente falando, porque faz parte da rede estadual de ensino junto todas as outras escolas da Serra do Arapuá. Mas os conteúdos são indígenas, quilombolas e os da sociedade envolvente também porque ninguém está isolado no mundo[62].

A ‘retomada da escola’, assim designado pela comunidade, representou a ruptura das relações de subordinação ao Poder Executivo municipal simbolizando o primeiro enfrentamento enquanto quilombo-indígena. A ação estratégica não só fortaleceu os laços políticos internos entre as famílias da Tiririca como também produziu um efeito de poder na região, segundo o ponto de vista Pankará

 

A gente viu a Tiririca muito perseguida, muita esquecida pelo Poder Público. O que a gente pensou? Vamos organizar a educação. Dissemos: vamos incluir na nossa organização da educação as escolas da Tiririca e com isso, a garantia do direito que Pankará já estava usufruindo. Então, o Estado [Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco] disse: como vocês vêm trazendo essa escola, a Tiririca não é um quilombo? Vocês agora querem que a gente reconheça, inclua, dê o direito a um quilombo de escola indígena? Afinal de contas, eles são índios ou são quilombolas? Aí Verinha foi e disse: “lá é um quilombo-indígena porque a nossa história e a nossa relação familiar são a mesma de Pankará”. E a religião contava muito nesse sentido, dos Encantos de Luz, da gente cultuar os mesmos rituais, enfim, isso estava muito explicado, o Estado não entende. E acho que o Estado foi vencido na prática ao perceber que isso é muito natural aqui no território, e quando a gente começa a executar, a construir juntos, as práticas pedagógicas juntos, todo mundo viu como isso na prática acontece para nós[63].

 

A busca por um projeto de educação autônomo tem origem no movimento deflagrado anos antes pelo povo Pankará no contexto de sua emergência étnica. A circunstância desencadeadora do movimento ‘retomada das escolas’ é análoga ao ocorrido na Tiririca. O prefeito de Carnaubeira da Penha tentou impedir a estadualização das escolas para mantê-las sob sua governança. Sobre este movimento analisamos em outro trabalho[64], importa aqui situar a estratégia pedagógica adotada para a formação, politização, mobilização e organização do povo face a antagonistas históricos.  

            A gestão da escola passa a ser dirigida pela Organização Interna da Educação Escolar Indígena Pankará (OIEEIP), instância destacada na organização sociopolítica na Serra do Arapuá. Nesse contexto, a professora Verinha, designada pelo conselho de lideranças, assume a função de coordenadora - posteriormente, professoras são escolhidas na própria comunidade e a escola volta a funcionar por conta e risco do povo. Depois de um ano, a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco cede às pressões da Comissão de Professores e Professoras Indígenas de Pernambuco (Copipe) e decreta sua inclusão na rede estadual, provendo-a de recursos humanos e materiais.

No curso dessas mudanças, os Pankará avaliam criticamente o currículo em seus fundamentos e programas. Não era mais possível manter uma educação formal anacrônica e avessa às lutas em curso.   Assentado em cinco eixos norteadores -território, identidade, organização, história e interculturalidade-, o currículo é incorporado ao Projeto Político Pedagógico (PPP) das escolas da Serra do Arapuá.  

No processo de reorganização étnica e de luta territorial, a comunidade decide instituir modos próprios de representação. Criam seu próprio conselho interno coordenado pelo cacique, pajé, mestre/mestra, contra-mestre/contra-mestra[65]. Quanto ao cacique e pajé, foram indicados o neto e bisneto de Manoel Miguel. Diferenciando-se da organização Pankará, composta da cacique, pajés e lideranças de aldeia, a Tiririca traz para sua representação política figuras de autoridade no ritual do Toré e Gira, os mestres e contra-mestres, subtende-se que a política é legitimada no e pelo ritual.

Quando são questionados sobre as dinâmicas internas envolvendo as relações de poder entre o quilombo e a Terra Indígena, arguem que há relação de alteridade na gestão do território e exercem poderes localizados em determinadas situações, o que se faz sem excluir a aliança política tecida sob uma mesma trama de sentidos no ritual, nas crenças, nos costumes

 

A Serra do Arapuá é um território com negro e índio e é assim. Na Tiririca é um quilombo-indígena e a gente se identifica com as coisas dos indígenas. É semelhante o ritual, a valorização dos mais velhos, o uso das matas, da jurema, os remédios caseiros, o modo de vida é tal qual índios e quilombolas. A gente acredita na cura através dos Encantados de luz. Essa foi a nossa criação[66].

 

Sem perder de vista as impossibilidades no e do Estado brasileiro, nota-se, na atualidade, que a deliberação autônoma alusiva a situação jurídica de cada território fortaleceu a organização sociopolítica na Serra do Arapuá. Aprenderam na experiência a demarcar os campos de atuação: ora negociando ou articulando interesses comuns, ora particularizando as demandas.

Rita Segato[67] defende que um Estado garantidor é aquele que não invade os espaços comunitários de construção de consensos e dissensos, devendo assegurar os modos como os grupos étnicos vão operar suas estratégias e decisões internas. Mesmo porque, a existência dessas coletividades no mundo passa justamente pela capacidade que têm de recriar formas de existir diante das mais diversas agressões a que estiveram submetidas.

O caráter processual do pensamento indígena/quilombola relativo a essas dinâmicas territoriais e de poder resulta da politização dos sujeitos acerca das suas especificidades. Alfredo Wagner explica que as territorialidades específicas “podem ser consideradas, portanto, como resultantes de diferentes processos sociais de territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território[68]. No conflito com a classe dominante da região, a fragilidade dos Pankará e da Tiririca reside, hoje, no processo inconcluso de regularização jurídica dos dois territórios. A omissão do Estado brasileiro coloca sob risco permanente a manutenção das relações de vida em todas as suas dimensões.

 

Notas para as considerações finais: os desafios para o reconhecimento de novas territorialidades plurais

 

Esta breve etnografia buscou colaborar para a reflexão antropológica das formas pluralistas de resistência à colonialidade do poder existentes em nosso continente. E, tal como propõe Aníbal Quijano, essas resistências são bem mais amplas e complexas; resultam em heterodoxias desafiadoras ao Estado brasileiro confrontando poderes locais. No desenvolvimento das ideias aqui apresentadas, partimos do pressuposto de que as diversas relações interétnicas situadas na realidade social latino-americana e, de modo especial, no Brasil, foram estruturadas em categorias coloniais orientadas ao apagamento do outro. Não reconhecem as diversas experiências de ser e estar no mundo historicamente dominadas e exploradas[69].

Considerando a grande diversidade de povos e comunidades tradicionais em todas as regiões do Brasil, certamente a situação etnográfica descrita neste artigo não é a única no país. São conhecidas cerca de doze categorias sociais[70], cada uma representa inúmeras comunidades, povos e movimentos sociais. Em relação às comunidades quilombolas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2020)[71], há no território nacional cerca de 5.972 (cinco mil, quatrocentos e setenta e dois) localidades com população autodeclarada quilombola, mas apenas 404 (quatrocentos e quatro) são territórios oficialmente reconhecidos.  No Nordeste, região onde se concentra a maior parte desses territórios, há 3.171 (três mil, cento e setenta e um) localidades quilombolas, mas apenas 176 (cento e setenta e seis) foram oficialmente reconhecidos.

 Mesmo com toda essa diversidade, observamos na Tiririca dos Crioulos elementos diferenciadores ao exame etnográfico em relação aos estudos análogos na região. Fazemos alusão aos casos presentes no trabalho de José Maurício Arruti[72] sobre as relações entre negros e indígenas. O autor problematiza a plasticidade das categorias identitárias baseado em várias realidades na região do São Francisco, dentre as quais indígenas e quilombolas operam narrativas internas de distinção entre “ser índio” e “ser negro”. Exemplos da construção de marcadores identitários homogêneos é decorrente das tensões originadas no período de extinção dos aldeamentos indígenas circundados de comunidades negras de ex-escravizados e de camponeses empobrecidos. Os casamentos interétnicos e a consequente miscigenação alteraram as características mais objetivas da distinção racial. Por exemplo, o fenótipo reclassificando-os “não tanto ou principalmente pela observação de suas características intrínsecas (fossem elas as mais obtusas ou estereotipadas), mas segundo os interesses e os instrumentos de dominação disponíveis”[73].

Assim, identificados sob a alcunha de marginais e pobres, remanescentes desde final do século XIX até as mudanças significativas da década de oitenta, essas coletividades surgem no cenário político da Constituinte oferecendo o próprio ponto de vista crítico às categorias coloniais. Negociam com o Estado os modelos jurídicos possíveis de abrigar a diferença sob as classificações genéricas de índios e remanescentes de quilombos. Reconhecemos as conquistas dos movimentos indígenas e quilombolas quanto ao reconhecimento do Estado nacional de suas identidades políticas, mas questionamos a razão desse mesmo Estado não reconhecer a agenda política dos movimentos quando afirmam a pluralidade das suas territorialidades. 

De forma reiterada, a quilombola Givânia Maria da Silva[74] tem dito que seja nos espaços políticos dos movimentos indígena e quilombola, seja nos espaços institucionais da pesquisa acadêmica e do Estado, o ordenamento jurídico do país tem a oportunidade de se atualizar quando aceita arcar com as demandas de concepções de territorialidade estabelecidas há décadas, e até século, por essas comunidades, todavia ainda inéditas para o próprio ordenamento jurídico e por quem o manuseia. Ora, o ordenamento jurídico nacional, tendo a Constituição enquanto carta máxima, também não necessita de atualizações em vista de novas insurgências de identidades, territorialidades, inclusive como efeito do que ele mesmo se tornou em reflexo das reivindicações dos povos e comunidades? A pergunta pode ser lida corroborando esse modo dual de se entender comunidade de um território possível de ser demarcado como quilombo, mas que para quem o ocupa se trata de um quilombo-indígena. Se esse é o entendimento comunitário, ao Estado cabe as salvaguardas jurídicas e de políticas públicas respeitando a escolha coletiva autodeterminada, com direitos estabelecidos de forma separada, os quais comumente respondem apenas à denominação administrativamente definida pelo Poder Executivo (ou é Terra Indígena ou é Quilombo) em detrimento do modo de entender dual autóctone.        

Embora registremos um maior protagonismo dos povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais na participação de suas organizações sociais na disputa pelas definições das políticas públicas a nível nacional, a eficácia simbólica do reconhecimento dessas novas identidades étnicas, no contexto pós-1988, tem sido pensada pelo Estado na dimensão multiculturalista. O multiculturalismo neoliberal sustenta-se na concepção de tolerância e não questiona o problema das relações de poder, da exploração, das desigualdades, das exclusões, permanecendo intacta a estrutura social e institucional que constrói as diferenças, “o recurso central à noção de ‘tolerância’ não exige um envolvimento ativo com os ‘outros’ e reforça o sentimento de superioridade de quem fala de um autodesignado lugar de universalidade”[75].

Para o jurista Carlos Wolkmer[76], a lógica do monismo social e da soberania estatal  ̶   com destaque às peculiaridades militares realçadas durante o governo de Jair Bolsonaro  ̶   dificulta o estabelecimento de um marco de alteridade na perspectiva de um pluralismo seja jurídico, social, cultural ou político. Para o autor, o “pluralismo”, enquanto formulação teórica e doutrinária, “designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si”[77].

Diante do exposto, reconhecemos nas diversas mobilizações políticas das comunidades negras rurais a contribuição na construção de novos paradigmas e desafios ao conceito de quilombo, afastando o viés histórico colonialista na direção de uma autoatribuição ratificada na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Porquanto, persiste a necessidade de asseverar às realidades etnográficas plurais, a exemplo do quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos, políticas públicas resultantes das territorialidades comuns quando assim desejarem as comunidades em seus processos decisórios autônomos

 

A luta dos grupos étnicos pelo reconhecimento perante o Estado brasileiro abre novas possibilidades de debates sobre a realidade social, evidenciando o confronto existente entre identidades étnicas geradas em torno de disputas territoriais. Essa situação questiona os limites espaciais tradicionalmente traçados pelas leis nacionais, aqueles que definem a cidade ou os espaços no interior da própria cidade e direcionam as discussões teóricas na busca de um aprofundamento do debate sobre a produção física e simbólica do espaço, pois o espaço é também objeto de disputa[78].

 

Conforme descrito, a constituição de grupos de trabalho distintos (Funai/Incra), para atuar na Serra do Arapuá, obedeceu a procedimentos burocráticos coordenados pelas agências estatais. Condicionou a separação de um território pluriétnico em categorias jurídicas distintas, submetendo-o a relações de subordinação ao Estado que aprofundam as desigualdades sociais. Isso porque a oferta de políticas públicas para indígenas e quilombolas no Brasil segue a regra da definição jurídica do território.

Ao ponderar que as modalidades de políticas específicas para indígenas têm maior avanço do que para os quilombolas, a comunidade da Tiririca encontra-se em visível desigualdade no campo da assistência, na maior parte das vezes desassistida, a exemplo das equipes de saúde indígena que não podem atender as famílias do quilombo-indígena. Enquanto os Pankará passam a gozar, dentro do seu território, de um mínimo de direitos no exercício de sua cidadania específica, as famílias da Tiririca precisam deslocar-se para os centros urbanos mais próximos. Enfrentam toda a dificuldade de transporte e recursos financeiros para conseguir atendimento na saúde e previdência. A única conquista dentro dessa transgressão foi a estadualização da escola. Ocorre que não sabemos até quando essa situação jurídica, de uma escola indígena em território quilombola, se sustenta.

No Brasil, a participação dos povos diretamente interessados na definição dos seus territórios denota um certo avanço da legislação republicana, não fosse o contrassenso do monismo jurídico estatal determinar os procedimentos administrativos implicados. Legitimado na suposta neutralidade das decisões técnicas de suas agências, o poder estatal reafirma a dominação simbólica somada ao peso da força institucional. O quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos torna-se um exemplo etnográfico para demonstrar como categorias locais podem desafiar as relações de poder com o Estado ao sustentar uma resistência na lógica identitária dual e não dicotômica. Na esteira do que argumenta Escobar: A través de sus prácticas diarias de ser, saber y hacer, los grupos locales han construido activamente sus mundos socio-naturales durante varios siglos, incluso cuando lo han hecho en medio de otras fuerzas[79].

Em outras palavras, a autoidentificação do quilombo-indígena parece, entretanto, trazer algo mais que um adendo à categoria jurídico-política de quilombo. Põe em xeque o poder de nominar as coisas pelo direito[80], tensionam as categorias jurídicas universais que visam reduzir a realidade social às fórmulas jurídicas que desprezam, põem à margem do direito, a pluralidade de mundos. Por fim, compartilhamos nosso sentimento e afetação com a experiência de campo apresentada acionando aportes epistemológicos fora da academia. Pedimos licença para expressar nossas inquietações na poesia de Patativa do Assaré intitulada “Eu e o Sertão”[81]

 

Sertão, argúem te cantô,

Eu sempre tenho cantado

E ainda cantando tô,

Pruquê, meu torrão amado,

Munto te prezo, te quero

E vejo qui os teus mistéro

Ninguém sabe decifrá.

A tua beleza é tanta,

Qui o poeta canta, canta,

E inda fica o qui cantá.

 

Ainda fica o que cantar e contar. Concluímos o artigo agradecendo aos Pankará e à Tiririca dos Crioulos por partilharem conteúdos tão sensíveis ao se disponibilizarem nossos interlocutores e interlocutoras na pesquisa. Os saberes e conhecimentos partilhados conosco sobre identidade, território e resistência, durante os três anos de pesquisa etnográfica, tornou possível um primeiro passo para a nossa compreensão acerca do significado e repercussões da formação social do quilombo-indígena no processo de ocupação tradicional na Serra do Arapuá. 

 

 



[1] Entrevista com a liderança Verinha, do Quilombo Tiririca dos Crioulos, 2013, realizada por Caroline Mendonça no marco do projeto de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco/Brasil. A pesquisa de campo ocorreu em períodos intercalados entre os anos de 2010 e 2013 com financiamento da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFPE.

[2] Aludimos às atividades desenvolvidas entre os anos de 1998 e 2011 no Conselho Indigenista Missionário (Cimi, regional Nordeste) e no Centro de Cultura Luiz Freire (Organização Não-Governamental, Olinda, Pernambuco), respectivamente. Os povos indígenas em Pernambuco situados no sertão do São Francisco são: Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras Pankararu, Pankaiuká, Atikum, Pankará, Pankará Serrote dos Campos, Truká.

[3] Órgão indigenista oficial vinculado ao Ministério da Justiça (MJ).

[4] Mendonça, Caroline Farias Leal (2013), Insurgência política e desobediência epistêmica: movimento descolonial de indígenas e quilombolas na Serra do Arapuá. [Tese Doutorado em Antropologia]. Recife-PE, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

[5] Instituição pública da esfera federal voltada para promoção de políticas afirmativas da população negra. É de sua competência a emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição no cadastro geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos definidas no artigo 68 ADCT da Constituição Federal de 1988.

[6] Categoria jurídica definida no artigo 68 ADCT da Constituição Federal de 1988. O termo “remanescentes” é muito criticado na antropologia brasileira e pelo movimento quilombola devido a sua conotação residual contrapondo a presença de sujeitos políticos organizados na contemporaneidade. A agenda política do movimento defende as categorias “comunidades quilombolas” e “quilombos”. Sobre este tema, ver: Arruti, José Maurício (2000), “Direitos étnicos no Brasil e na Colômbia: notas comparativas sobre hibridização, segmentação e mobilização política de índios e negros”, Horizontes Antropológicos, nº 14, pp. 93-123.

[7] Órgão Federal vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

[8] Citado por Walsh, Catherine (2009), “Interculturalidad crítica y pedagogía de-colonial: apuestas (des) de el in-surgir, re-existir y re-vivir”, Revista (entre palabras), nº 3, p. 12

[9] Hohenthal Jr., William Dalton (1960), “As tribos indígenas do médio e baixo São Francisco”, Revista do Museu Paulista, Nova Série, nº 12, pp. 37-71.

[10] Prance, Ghillean Tolmie (1982), “Forest refuges: evidences from woody angiosperms”. In Prance, Ghillean Tolmie, Biological diversification in the tropics, New York, Columbia University Press.

[11] Mendonça, Caroline Leal; Andrade, Lara (2013), Relatório de Identificação e Delimitação do território da Comunidade Quilombola Tiririca dos Crioulos, Petrolina-PE, Ministério do Desenvolvimento Agrário/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/SR 29. 

[12] Portaria Fundação Cultural Palmares (FCP) Nº13, em 04 de março de 2008, registro nº 992, fl 08. 

[13] A Terra Indígena Pankará está delimitada aguardando a Portaria Declaratória e demais procedimentos. Diário Oficial da União de 20/04/2018 (Adiante D.O.U [Diário Oficial da União], Despacho Nº 1, de 19 de abril de 2018. Edição: 76. Seção: 1. Páginas: 29-32. Ministério da Justiça/Fundação Nacional do Índio. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diários /187121552/dou-secao-1-20-04-2018-pg-29 [Consulta: 13 de abril de 2022].

[14] Mendonça, Caroline Farias Leal (2018), Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Serra do Arapuá, Povo Indígena Pankará, Carnaubeira da Penha-PE, Brasília-DF, Ministério da Justiça/Fundação Nacional do Índio.

[15] Arquivo Público Estadual Jordão Emerênciano (APEJE/PE), Câmara Municipal 54, Floresta. OFÍCIO,18jan. 1866, fl. 374.

[16] Andrade, Lara (2010), “Nem emergentes, nem ressurgentes, nós somos povos resistentes”: território e organização sociopolítica entre os Pankará. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais), Recife-PE, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

[17] O ‘mandonismo’, categoria empregada por José Murilo de Carvalho (1997) é um conceito relacionado as ideias de coronelismo e clientelismo, contudo não são sinônimos e guardam suas especificidades. Refere-se ao exercício de poder arbitrário por um chefe de oligarquia local. Aquele que detém privilégios econômicos, são donos de terra e mandam nos sertanejos pobres utilizando recursos de violência armada, tortura, e outros meios para interditar o livre acesso destes ao trabalho e à vida política autônoma. Estudiosos do tema explicam ser um modo de operar a política no início da colonização perdurando até os dias de hoje nas regiões em que o Estado é ausente. Cf. Carvalho, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual.” Dados, Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, pp, 229-250. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003 [Consulta: 3 de agosto del 2013].

[18] Versiani, Flávio Rabel; Vergolino, José Raimundo Oliveira (2016), “Estrutura de Posse de Escravos em Pernambuco”. Em Versiani; Nogueról (orgs.), Muitos Escravos, Muitos Senhores..., Brasília, Edu-UnB, pp. 147-162.

[19] Galliza, Diana Soares (1977), O declínio da Escravidão na Paraíba (1850-1888). [Dissertação de Mestrado em História], Recife, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco.

[20]   Mendonça, Caroline Farias Leal, 2013, Ob. Cit., p. 80.

[21] Ferreira, Maria (2011), Práticas de sociabilidade de proprietários fundiários de Floresta e de Tacaratú: Sertão de Pernambuco (1840-1880). [Tese Doutorado em História]. Recife-PE, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, p.213.

[22] Fanon, Frantz (2010), Os Condenados da Terra, Juiz de Fora, Universidade Federal de Juiz de Fora.

[23] Ferreira, Maria, 2011, Ob. Cit., p. 213.

[24] Quijano Aníbal (2005a), “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. Em Lander, Edgardo (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, Buenos Aires, CLACSO, (Colección Sur Sur), p. 228.

[25] Quijano Aníbal (2005b), “Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina”, Estudos Avançados – USP, Dossiê América Latina, vol. 19, nº 55, pp 9-31.

[26] Mignolo, Walter (2008), “Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política”, Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, nº 34, p. 298.

[27] Escobar, Arturo y Restrepo, Eduardo (Traductor) (2010), “Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes,” Biblioteca Digital Juan Comas. Disponible en:  http://bdjc.iia.unam. mx/items/show/108 [Consulta 21 de novembro de 2022].

[28] Trecho da entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2013, Ob. Cit.

[29] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.

[30] A pesquisa de campo no quilombo-indígena teve início em 2010, integrando as atividades do meu doutoramento e dos trabalhos da Funai. Outras incursões ocorreram no contexto da coordenação do Grupo de Trabalho para a caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural para o Incra, entre 2012 e 2013. Nesta última fase contou com a participação e parceria da antropóloga Lara Andrade de Almeida resultando na elaboração, de nossa autoria, do Relatório Antropológico de Identificação e Delimitação do território da Comunidade Quilombola Tiririca dos Crioulos. Ver: Mendonça, Caroline Leal; Andrade, Lara, 2013, Ob. Cit., pp 1-154.

[31] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.

[32] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.

[33] Entrevista com Maria de Ginú, parteira e anciã da Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.

[34] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2010, Ob. Cit.

[35] Pai do pajé Pankará João Miguel. Antônio Miguel permaneceu morando na Serra do Arapuá, aldeia Enjeitado. 

[36] Em tradução sucinta o Toré é um ritual comum aos povos indígenas na região Nordeste. Na primeira metade do século XX foi exigido pelo Serviço de Proteção ao Índio como critério de comprovação da identidade indígena.

[37] Entrevista com João Miguel, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit. Nesta entrevista o pajé explica a diferença entre os rituais indígenas praticados no Nordeste, chamado de Toré, e os rituais de matriz afrodescendente como a Umbanda e a Gira. A Jurema é uma planta alucinógena (do gênero Mimosa) consumida nos rituais do Toré para facilitar a comunicação com os entes espirituais (Encantados).  

[38] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca dos Crioulos, 2012, Ob. Cit.

[39] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.  

[40] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.

[41] Entrevista com Izaias Rosa, liderança Pankará, 2010, Ob. Cit.

[42] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.

[43] Fanon Frantz (2010), Os Condenados da Terra, Juiz de Fora: UFJF, p. 59.

[44] Entrevista com Maria de Ginú, parteira e anciã da Tiririca dos Crioulos, 2010, Ob. Cit.  

[45] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca dos Crioulos, 2013, Ob. Cit.

[46] Entrevista com Roberto, liderança da Tiririca, 2010, Ob. Cit.  

[47] Henriques Isabel Castro (2004), Território e Identidade. A construção da Angola colonial (c.1872 – c.1926), Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa.

[48] Henriques Isabel Castro, 2004, Ob. Cit., p. 13.

[49] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.  

[50] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.  

[51] Entrevista com João Miguel, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit. O pajé é primo de Verinha e Roberto, sobrinho de Manoel Miguel.

[52] Entrevista com Dorinha Limeira, cacique Pankará, 2010, Ob. Cit.  

[53] Ofício nº 4 de 2010 da Associação dos Remanescentes do Quilombo Tiririca endereçado ao Incra - DF. 

[54] Usamos a expressão de “negação explícita” pelo fato de o chefe do Poder Executivo federal declarar publicamente suas intenções de não reconhecimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas. Há inúmeras reportagens que circulam na impressa nacional e internacional sobre o tema. Veja-se exemplo desta repercussão na seguinte declaração de Bolsonaro: “Enquanto eu for presidente, não tem demarcação de terra indígena”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-enquanto-eu-for-presidente-nao-tem-demarcacao-de-terraindigena/amp/#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=16 514128283120&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com. [Consulta: 18 de abril de 2022].

[55] Trecho da entrevista com Luciete, professora Pankará, 2013, Ob. Cit.

[56] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.

[57] Quijano Aníbal (1988), “America latina: las bases de otra racionalidade”. En Quijano, Aníbal, Modernidad, identidad y utopia en América Latina, Lima, Sociedade e Política Ediciones, pp. 29-33.

[58] Entrevista com Roberto, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.  

[59] Objeto ritual feito da cabaça (Lagenaria siceraria) para evocar os espíritos ancestrais.

[60] Entrevista com Manoelzinho Caxiado, pajé Pankará, 2010, Ob. Cit.

[61] No estado de Pernambuco a oferta da educação escolar em comunidades quilombolas é de responsabilidade dos municípios. Já a educação escolar indígena é de responsabilidade do governo estadual. A transferência de reponsabilidades destas últimas para a rede estadual ocorreu no ano de 2012 em razão das lutas da Comissão de Professores/as Indígenas de Pernambuco (Copipe) e de seus aliados. Foi uma estratégia política para assegurar a autonomia das escolas indígenas conferida pela legislação nacional, pois na maioria das realidades em Pernambuco, os chefes dos Poderes Executivos municipais são invasores das terras indígenas.

[62] Entrevista com Verinha, liderança da Tiririca, 2013, Ob. Cit.

[63] Entrevista com Luciete, professora Pankará, 2013, Ob. Cit.

[64] Mendonça Caroline (2019), “Retomada da educação escolar. Um estudo sobre educação, território e poder na experiência Pankará”, Interritórios Revista de Educação, vol. 5, nº 9. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/interritorios/article/view/243605 [Consulta: 12 de maio de 2022].

[65] Santos Sá, Aleckssandra; Serradela, Larissa Isidoro; y Neto, Nivaldo Aureliano (2016), Tiririca dos crioulos: um quilombo-indígena, Carnaubeira da Penha-PE, Associação dos Remanescentes do Quilombo Tiririca. Disponível em: http://afro.culturadigital.br/wp-content/uploads/2016/07 /Tiririca_dos_crioulos_um_quilombo_indi%CC%81gena-1.pdf . [Consulta em 20 de abril de 2022].

[66] Entrevista com Verinha, liderança Tiririca, 2013, Ob. Cit.

[67] Segato, Rita Laura (2014), “Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores”, Direito.UnB - Revista de Direito da Universidade de Brasília, vol. 1, nº 1), p. 65–92. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb /article/view/24623 [Consulta: 13 de abril de 2022].

[68] Almeida, Alfredo Wagner Berno de (2006), Terras de Quilombo, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: terras tradicionalmente ocupadas, Manaus, PPGSCA-UFAM, p. 25.

[69] Restrepo, Eduardo y Rojas, Axel (2010), Inflexión decolonial: fuentes, conceptos cuestionamientos, Popayán, Samava.

[70] Almeida, Alfredo Wagner Berno de (2006), Ob. Cit., pp 57-61. As categorias sociais citadas pelo autor são: povos indígenas, quilombolas, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu, pescadores, ribeirinhos, atingidos por barragens, atingidos pela base de Alcântara (MA), fundo de pasto e faxinal.

[71] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (2020), “Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os indígenas e quilombolas para enfrentamento à Covid-19. Notas Técnicas”, Volume especial. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao _do_territorio/tipologias_do_territorio/base_de_informacoes_sobre_os_povos_indigenas_e_quilombolas/indigenas_e_quilombolas_2019/Notas_Tecnicas_Base_indigenas_e_quilombolas_20200520.pdf.  [Consulta:11 de julho de 2022]

[72] Arruti, José Maurício Andion (1997), “A emergência dos ‘remanescentes’: notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas”, MANA, vol. 3, nº 2, pp. 7-38.

[73] Arruti, José Maurício Andion, 1997, Ob. Cit., p. 17.

[74] Quilombola de Conceição das Crioulas, em Salgueiro, Pernambuco, Givânia é uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Integrou a Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais (Subcom), na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do governo federal, durante a Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, onde contribuiu na gestão da política de promoção da igualdade racial.

[75] Sousa Santos, Boaventura y Nunes, João Arriscado, 2003, Ob. Cit., p. 31.

[76] Wolkmer, Antonio Carlos (2001), Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito, São Paulo,editora Alfa-Omega.

[77] Wolkmer, Antonio Carlos, 2001, Ob. Cit., p. 171.

[78] Vieira, Judith Costa (2010), “Quem pode ser Quilombola? A(RE) Construção da Identidade Coletiva do Quilombo do Maicá, Santarém, Pará”. Em Almeida, Alfredo Wagner Berno de [et al.] (orgs.). Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos, Manaus, Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/UEA Edições, p. 179.

[79] Escobar, Arturo y Restrepo, Eduardo, 2010, Ob.Cit., p. 48.

[80] Bourdieu Pierre (2004), Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico, São Paulo: UNESP.

[81] Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Poesia Nordestina. Parabéns Patativa! 7 poemas de Assaré neste especial de aniversário. Sua obra conta sobre a vida do povo sertanejo, suas dores e lutas, 5 março de 2021. Disponível em: https://mst.org.br/2021/03/05/ parabens-patativa-7-poemas-de-assare-neste-especial-de-aniversario/ [Consulta: 01 de setembro de 2022].