Revista Andes, Antropología e Historia

Vol. 33, Nº 1, Julio – Diciembre 2022

 

Esta obra está bajo licencia de Creative Commons Atribución - No Comercial CC BY-NC    https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ ISSN Nº 1668-8090

 

 

“TUDO SE PROIBIA, SÓ A MORTE NÃO ERA PROIBIDA!!”: AS RESTRIÇÕES ÀS ENCOMENDAÇÕES DE CADÁVERES DURANTE A EPIDEMIA DE FEBRE AMARELA NO RIO DE JANEIRO (1848-1851)

 

“¡¡TODO ESTABA PROHIBIDO, SOLO LA MUERTE NO ESTABA PROHIBIDA!!”: RESTRICCIONES A LOS OFICIOS DE DIFUNTOS DURANTE LA EPIDEMIA DE FIEBRE AMARILLA EN RÍO DE JANEIRO (1848-1851)

 

“EVERYTHING WAS PROHIBITED, ONLY DEATH WAS NOT PROHIBITED!!”: RESTRICTIONS TO OFFICE OF THE DEAD DURING THE YELLOW FEVER EPIDEMIC IN RIO DE JANEIRO (1848-1851)

 

Claudia Rodrigues

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

claudia.rodrigues@unirio.br

 

 

Fecha de ingreso: 30/05/2022    

Fecha de aceptación: 01/09/2022

 

 

Resumo

Diante da grave epidemia de febre amarela que assolou a cidade do Rio de Janeiro entre fins de 1849 e meados de 1850, uma série de medidas foi implementada pelo governo imperial, mediante suporte de médicos higienistas, com vistas a reduzir a quantidade de doentes e de mortes. A partir da análise da legislação higienista, das constituições sinodais da Bahia, artigos de jornais e registros paroquiais de óbito de quatro freguesias urbanas da Corte, busca-se identificar de que modo os dispositivos sanitários impostos pelo governo imperial interferiram na dinâmica da tradicional prática da encomendação de cadáveres, considerada pela hierarquia eclesiástica como de caráter sagrado, clerical e de jurisdição paroquial, suscitando reações do clero católico da Corte e deixando marcas para além do contexto epidêmico.

 

Palavras-chave: epidemia de febre amarela, dispositivos sanitários, costumes fúnebres, encomendação de cadáveres, paróquia

 

 

Resumen

Ante la grave epidemia de fiebre amarilla que asoló la ciudad de Río de Janeiro entre fines de 1849 y mediados de 1850, el gobierno imperial implementó una serie de medidas, con el apoyo de higienistas, para reducir el número de pacientes y muertes. A partir del análisis de la legislación higienista, las constituciones sinodales de Bahía, artículos de prensa y actas parroquiales de defunción de cuatro parroquias urbanas de la Corte, buscamos identificar cómo los dispositivos sanitarios impuestos por el gobierno imperial interfirieron en la dinámica de la práctica tradicional de oficio de difuntos, considerado por la jerarquía eclesiástica como de jurisdicción sagrada, clerical y parroquial, suscitando reacciones del clero católico de la Corte y dejando huellas más allá del contexto epidémico.

 

Palabras clave: epidemia de fiebre amarilla, dispositivos sanitarios, costumbres funerarias, oficio de difuntos, parroquia

 

 

Abstract

Faced with the serious epidemic of yellow fever that devastated the city of Rio de Janeiro between the end of 1849 and the middle of 1850, a series of measures was implemented by the imperial government, with the support of hygienists, with a view to reducing the number of patients and deaths. From the analysis of the hygienist legislation, the synodical constitutions of Bahia, newspaper articles and parish death records of four urban parishes of the Court, we seek to identify how the sanitary devices imposed by the imperial government interfered in the dynamics of the traditional practice of office of dead, considered by the ecclesiastical hierarchy as sacred, clerical and parochial jurisdiction, arousing reactions from the Catholic clergy of the Court and leaving marks beyond the epidemic context.

 

KEywords: yellow fever epidemic, sanitary devices, funeral customs, office of the dead, parish

 

 

 

 

Em trabalhos anteriores demonstrei de que modo a febre amarela contribuiu para a significativa alteração da prática de sepultamento no Rio de Janeiro representando o marco do fim dos enterros nas igrejas e da criação de cemitérios extramuros há décadas demandados[1]. A questão que me ponho no presente artigo é a análise sobre o modo pelo qual o número de mortes, o medo do contágio e os dispositivos sanitários impostos pelas autoridades governamentais interferiram na dinâmica paroquial do tradicional ritual católico da “encomendação de cadáveres” que antecedia o sepultamento propriamente dito. Para tal, farei uso de avisos, portarias e regulamentos que compuseram os dispositivos sanitários; de artigos de jornal e outros documentos por meio dos quais podemos identificar reações do clero católico; e de uma amostragem de registros paroquiais de óbito de quatro das oito freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro: São José, Candelária, Santa Rita e Santana[2], que ocupavam a área central e mais populosa da Corte, estavam situadas próximo ao porto e as duas primeiras, especialmente, sediavam as principais instituições imperiais e parte significativa do comércio, dentre outras características[3]. O total de 4.993 registros foi reunido mediante a transcrição dos assentos de óbito de cada freguesia em um único banco de dados do Access, da Microsoft, referentes ao período de um ano que antecedeu a epidemia (do início de novembro de 1848 ao fim de novembro de 1849, com total de 1.830 registros), o período de oito meses durante o surto epidêmico (entre o início de dezembro de 1849 e o final de agosto de 1850, seguindo a periodização de José Pereira Rego, com o total de 1.812 registros) e o período de um pouco mais de um ano após a febre amarela (entre setembro de 1850 e fim de dezembro de 1851, contendo 1.284 registros). A partir destas fontes foi possível relacionar os dispositivos sanitários a aspectos da dinâmica paroquial da encomendação de cadáveres ao longo destes três períodos, com vistas a identificar de que modo as restrições governamentais reverberaram na realização das cerimônias religiosas que faziam parte das exéquias, suscitando reações entre o clero católico. Devido aos limites de espaço deste artigo, não será possível fazer uma análise mais detida acerca do impacto da epidemia sobre a prática cotidiana de encomendação de cadáveres em diferentes paróquias da Corte, considerando as clivagens sociais da ritualização de uma importante etapa dos funerais católicos. Assunto que será abordado em outro artigo.

 

Tudo se proibia, só a morte não era proibida!!”[4]

 

­Introduzida em Salvador, na província da Bahia, em 30 de setembro de 1849, por intermédio de uma embarcação proveniente de New Orleans com marinheiros contaminados, a febre amarela se alastrou por diferentes cidades portuárias do Brasil. Foi também de Salvador que chegou ao porto do Rio de Janeiro, em 3 de dezembro, instalando-se vagarosamente desde então até se intensificar em fevereiro de 1850[5]. Até esse mês houve resistência e demora de instituições médicas e autoridades governamentais em admitir que uma epidemia estava instalada na cidade, em que pese o alerta dado por médicos, como Robert Avé-Lallemant[6], desde dezembro de 1849. Somente em 5 de fevereiro de 1850 o Ministério dos Negócios do Império deu início a ações de combate ao surto. Para tal, criou uma Comissão Central de Saúde Pública formada por um grupo de médicos ligados à Academia Imperial de Medicina[7]. Uma semana depois, a comissão produziu uma lista de conselhos higiênicos e providências a serem tomadas pela população da Corte para prevenir o acometimento da epidemia e tornar seus efeitos menos graves. Com base neste documento, o Ministro dos Negócios do Império, Visconde de Monte Alegre, publicou o Aviso imperial de 14 de fevereiro de 1850[8], dirigido ao presidente da câmara municipal do Rio de Janeiro, Dr. Candido Borges Monteiro. Por meio dele, determinou a divulgação dos conselhos higiênicos na imprensa da Corte e ordenou que a câmara municipal organizasse as medidas que julgasse necessárias para tornar a epidemia “menos funesta”, fazendo uso de uma lista com 33 artigos anexados ao Aviso imperial relacionando as providências que o Ministério mandava executar para prevenir e atalhar o progresso da febre amarela.

Seis eram relativos a enterros, funerais e luto. O art. 12 proibia multiplicados enterros numa só igreja, mandando que tão logo fosse possível as inumações deveriam ser feitas extramuros. O art. 13 determinava que uma comissão médica a ser criada em cada freguesia visitaria as respectivas igrejas para examinar se as inumações correspondiam à quantidade de sepulturas dos templos ou se haveria exumações extemporâneas[9]. Pelo art. 14 ficavam “absolutamente proibidas” as armações fúnebres dentro e fora das casas, a fim de evitar “a impregnação e o transporte de miasmas”. O art. 15 ordenava que as encomendações fossem feitas nas casas dos falecidos e que os cadáveres seriam conduzidos sem demora para sepultura em caixões construídos todos de madeira e hermeticamente fechados para não serem abertos por ocasião do enterro. No art. 16 se proibia inteiramente os dobres de sinos. Por fim, o art. 17 proibia que as casas fossem fechadas durante o período de “nojo” (luto), devendo-se conservar as portas e janelas abertas para haver maior ventilação[10].

Em resposta à determinação imperial, o presidente da câmara municipal publicou o Edital de 19 de fevereiro, intitulado “Proíbe multiplicados enterros em uma só igreja”. Neste documento ele determinava a publicação e afixação de um texto contendo apenas oito dos 33 artigos anexados ao Aviso do Ministério do Império. Dentre estes, cinco se referiam a enterros, funerais e luto, reproduzindo o teor dos artigos acima mencionados, mas omitindo a proibição de dobre de sinos e a menção de que logo que fosse possível os enterros seriam “todos extramuros”[11]. Com essas omissões, a câmara evitava intervir na costumeira prática de dobrar os sinos para sinalizar a morte e o enterramento dos moribundos[12] e, mais ainda, continuava a se esquivar da execução da legislação imperial que atribuía à municipalidade o estabelecimento de cemitérios extramuros na cidade do Rio de Janeiro[13]. Há que se destacar também que entre os conselhos indicados pela Comissão Central de Saúde Pública às famílias, publicados nos jornais de 14 de fevereiro, não havia menção alguma aos artigos relativos aos funerais e enterros contidos no Aviso imperial e no Edital da municipalidade[14]. O que significa que neste primeiro momento não houve publicização das restrições funerárias que as autoridades mandavam ser seguidas naquela conjuntura epidêmica.

Dentre os médicos que compunham a Comissão Central de Saúde Púbica, estava o dr. José Maria de Noronha Feital, autor de um artigo sobre as medidas para prevenção da febre amarela publicado inicialmente em um periódico médico e divulgado posteriormente num opúsculo[15]. Esta obra foi a base teórica para a elaboração do Aviso imperial e de outro dispositivo sanitário mais robusto que foi o Regulamento Sanitário publicado em 4 de março para ser adotado nas oito paróquias centrais da Corte[16]. Diferentemente do Aviso, o Regulamento foi divulgado em diferentes jornais do Rio de Janeiro, “armando pela primeira vez, todo um dispositivo de esquadrinhamento e disciplina do espaço urbano”[17]. Dos 28 artigos nele contidos, o tema dos funerais, enterros e luto aparecia em três, sintetizando todas as medidas presentes nos outros dois documentos produzidos em fevereiro[18]. Vale a pena reproduzir o conteúdo para identificarmos a lógica do agrupamento feito. O artigo 9 proibia que se realizassem múltiplos enterros numa única igreja e determinava a fiscalização sobre se os sepultamentos eram feitos segundo as regras prescritas de que as inumações deveriam ter relação com a quantidade de sepulturas existentes nos templos, proibindo que se fizessem exumações fora do tempo determinado. Para tal, foi exigido que párocos, confrarias e irmandades deveriam providenciar “sem demora” uma relação das sepulturas de cada igreja identificando as que se encontravam ocupadas e desde quando. O objetivo aqui parece ser o de evitar o acúmulo de cadáveres na mesma sepultura e/ou que se retirasse um corpo já inumado antes do tempo necessário para dar lugar a outro, evidenciando que a recorrência da expressão “multiplicados enterros numa só igreja” nos documentos anteriores parecia ser uma prática conhecida e a qual se buscava restringir. O artigo 10 determinava a interrupção dos dobres de sinos, as armações funerárias dentro e fora das casas e que, “depois de feita a encomendação em casa”, os caixões seriam “hermeticamente fechados” para não serem abertos nas igrejas sob “nenhum pretexto”. Por fim, o artigo 11 proibia que durante o nojo (luto) se fechasse as casas em que tivesse falecido alguém de febre amarela[19].

Com estas medidas, a Comissão Central de Saúde Pública buscou controlar o contato da população com os miasmas[20] cadavéricos. Para médicos sanitaristas como o Dr. Feital[21], somente assim se evitaria “respirar-se miasmas que sempre prejudicam, e que aumentem a repugnância que se tem aos mortos”. O risco das armações funerárias feitas nas casas era que os objetos e tecidos se impregnassem de exalações cadavéricas contaminando as outras casas que fariam uso dos mesmos objetos alugados[22]. Motivos pelos quais se proibiam as armações funerárias das casas e igrejas, assim como os caixões de grades cobertos de veludo ou pano que deixavam transpirar os miasmas. Ao criticar o costume de se fechar as janelas e as portas das casas em que se encontrava um cadáver, algumas vezes em adiantado estado de putrefação, ele argumentava que respirar neste ambiente representava um sacrifício para os vivos e uma "mísera" prática em nada útil ao morto, que considerava sinal de "barbaridade"[23]. Mas, se por um lado tais medidas visavam ocultar dos vivos o cheiro dos mortos[24], por outro não proibiram a inumação no interior dos templos. O aumento do número de mortes, entretanto, seria determinante para o acirramento das restrições às práticas funerárias.

Segundo o relato do médico José Pereira Rego - presidente da Academia Imperial de Medicina e da Junta Central de Higiene Pública -, março foi o mês em que a epidemia fez mais vítimas na cidade, ultrapassando a quantidade de 90 mortos no dia 15[25]. Para identificar de que modo esta afirmação transparece em nossa amostragem, agrupei os assentamentos por intervalo semanal entre o início de dezembro de 1849 e 31 de agosto de 1850. Feito isso, identifiquei e recortei o período com maior concentração de falecimentos ao longo do surto epidêmico, cujos índices se encontram no Quadro 1. Para evidenciar o que podemos considerar aqui como o pico da epidemia nas quatro freguesias analisadas, usei cores que identificam o gradativo aumento/diminuição dos índices semanais (em amarelo e laranja), o momento de intensificação das mortes (em vermelho) e a semana com o maior índice de óbitos (em vinho). Neste recorte, é possível verificar que a concentração dos falecimentos ocorreu entre 21 de fevereiro e 01 de maio[26], sendo o intervalo de 7 de março a 10 de abril a fase de pico dos óbitos, cuja concentração se deu na semana entre 21 e 27 de março.

 

 

QUADRO 1: Quantidade de registros de óbitos em intervalo semanal

SEMANA

TOTAL REGISTROS

MÉDIA POR DIA

30 de janeiro a 06 de fevereiro de 1850

51

7,3

07 a 13 de fevereiro de 1850

44

6,3

14 a 20 de fevereiro de 1850

50

7,1

21 a 27 de fevereiro de 1850

82

11,7

28 de fevereiro a 06 de março de 1850

99

14,1

07 a 13 de março de 1850

124

17,7

14 a 20 de março de 1850

122

17,4

21 a 27 de março de 1850

131

18,7

28 de março a 3 de abril de 1850

115

16,4

04 a 10 de abril de 1850

115

16,4

11 a 17 de abril de 1850

80

11,4

18 a 24 de abril de 1850

72

10,2

25 de abril a 01 de maio de 1850

58

8,3

02 a 08 de maio de 1850

43

6,1

FONTE: Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro[27].

 

 

A intensidade da epidemia neste mês de março chegou ao “ponto de já não haver lugar quase nos templos para se sepultarem os corpos”, nas palavras de Pereira Rego[28]. Afirmação idêntica foi feita pelo médico Robert Avé-Lallemant, ao dizer que “nas igrejas não cabiam mais os cadáveres”[29]. Exemplo do excesso de sepultamentos nos templos em nossa amostragem foi o do dia 9 de março, que concentrou 31 inumações. Excetuando os cinco casos de igrejas com apenas um sepultamento, os demais foram distribuídos da seguinte forma: nove cadáveres na igreja matriz de Santa Rita; cinco na igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte; três nas igrejas de São Domingos e de Santo Antônio dos Pobres e dois na matriz do Santíssimo Sacramento e nas igrejas do Convento do Carmo e da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência[30].

Diante de tal quadro, já no dia seguinte ao 15 de março, o Ministério dos Negócios do Império expediu uma Circular para o bispo, paróquias, capelas, ordens terceiras e conventos da Corte, além da câmara municipal[31], determinando o fim definitivo dos enterramentos nas igrejas das freguesias centrais da cidade do Rio de Janeiro[32]. Este foi um dos dispositivos sanitários mais representativos de toda a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, pois eliminou definitivamente a tradicional prática de sepultamentos nas igrejas da Corte, após meio século de infrutíferas tentativas de implantação por parte das autoridades governamentais e médicas. Em substituição às igrejas, o Visconde de Monte Alegre ordenou que os enterramentos fossem destinados a dois dos maiores cemitérios descolados dos templos então existentes e, portanto, mais afastados da cidade: o Campo Santo da Santa Casa da Misericórdia (destinado aos indigentes, escravos, mortos no hospital da Misericórdia, dentre outros), localizado na Ponta do Caju, que ficava no extremo norte da cidade; e o recém-criado cemitério da Ordem Terceira de São Francisco de Paula (destinado até então ao enterramento dos seus irmãos), situado no Catumbi, uma área mais distante das ruas centrais da cidade e pertencente à freguesia de Santana, mas que se encontrava mais próximo das freguesias urbanas do que o Campo Santo da Misericórdia[33].

Devido a esta localização mais favorável, o Cemitério do Catumbi ocuparia, doravante, o centro das atenções no que se refere às medidas de controle da epidemia. Sua construção se iniciara em novembro de 1849, um pouco antes de a epidemia chegar ao Rio de Janeiro e fez parte do projeto de expansão do espaço para sepultamento dos irmãos da Ordem Terceira de São Francisco de Paula em virtude de as catacumbas de sua igreja serem recorrentemente procuradas para sepultura das “pessoas mais notáveis” da cidade[34]. Já antes da publicação da Circular de 16 de Março, o cemitério do Catumbi havia sido requisitado pelo Chefe de Polícia da Corte, Antônio Simões da Silva, para dar sepultura ao número crescente de mortos da cidade. Em ofício enviado em 5 de março à Ordem Terceira de São Francisco de Paula, solicitou que o cemitério em construção desse sepultamento naquele mesmo dia a todos os cadáveres para lá remetidos, em atendimento à urgência do bem público. Provavelmente devido ao não cumprimento desta determinação, a ordem terceira foi acionada três dias depois, desta vez pelo Ministro dos Negócios do Império, que enviou novo ofício com o mesmo teor. Neste documento, o Visconde de Monte Alegre determinava que, diante da necessidade de enterrar os cadáveres em cemitérios extramuros, aquela venerável ordem terceira providenciasse as medidas necessárias para o sepultamento no terreno de seu cemitério a todos os corpos que para lá fossem remetidos, “ficando para este efeito suspensas e dispensadas quaisquer formalidades” do seu Compromisso que retardassem o cumprimento daquele dispositivo imperial[35]. É possível que, por se tratar de uma ordem terceira que congregava a elite social, os terceiros franciscanos tenham criado embaraços para receber indiscriminadamente os cadáveres de todos os segmentos sociais, com base no argumento de que a necrópole se destinava apenas aos irmãos a ela afiliados.

Somente cerca de quinze dias após o recebimento do primeiro ofício o cemitério do Catumbi entraria em funcionamento; o que ocorreu no dia 20 de março, após o espaço receber a bênção solene do Vigário Geral do Bispado do Rio de Janeiro, Monsenhor Narciso da Silva Nepomuceno. Desde então, ele concentrou 75,7% dos sepultamentos de nossa amostragem; enquanto 19,1% foram inumados no Campo Santo da Misericórdia, no Caju; e 1,16% no cemitério do Hospício de Pedro II[36]. Estes dados demonstram que o cemitério do Catumbi funcionou como “cemitério público” provisório durante o período epidêmico[37]. Um dos motivos da preferência da população por este cemitério era a sua localização. Se a região da Praia Vermelha, onde se localizava o cemitério do Hospício de Pedro II, estava bastante longe da área central da cidade, o “longínquo bairro da Ponta do Caju”[38] era igualmente distante da área central. Paradoxalmente, outro fator que contribuiu para a concentração de sepultamentos no Catumbi se relaciona às características daquela sociedade escravista, profundamente hierarquizada, cujas diferenciações sociais afetavam as atitudes diante da morte[39]. Reconhecido à época como cemitério destinado às pessoas mais notáveis da sociedade, o Cemitério do Catumbi atrairia as famílias com mais posses que buscavam sepultamento menos distante da área central da cidade[40] e associado a isso, não podemos esquecer o fato de a epidemia ter afetado parte da elite social da época. Em contraposição, o Campo Santo da Misericórdia, criado em 1839, era destinado aos desprivilegiados daquela cidade[41].

A concentração dos sepultamentos no cemitério da ordem terceira de São Francisco de Paula poria fim à fragmentação dos cortejos e sepultamentos pelas dezenas de igrejas das oito paróquias urbanas da Corte, algumas das quais realizavam sepultamentos há cerca de trezentos anos[42]. Dentre estas, a maioria absoluta se localizava nas freguesias do Santíssimo Sacramento, Candelária, de São José, Santa Rita e Santana. O Mapa 1 mostra a espacialidade da área central que reunia estas igrejas (algumas estão identificadas pela numeração da legenda) e sua distribuição entre as ruas centrais da Corte. Nesta representação espacial, a distância do cemitério do Catumbi e do Campo Santo da Misericórdia é evidenciada pela sua ausência no mapa. Mas, para efeitos de orientação, a seta em vermelho, na parte inferior esquerda mostra a direção do Campo Santo da Misericórdia, na Ponta do Caju, para além do mapa. A seta laranja na parte inferior mais central, sobre a legenda com os nomes das igrejas marca a área aproximada da localização do cemitério do Catumbi; ou seja, menos distante da área central do que o Campo Santo da Ponta do Caju.

É possível que a existência de dezenas de templos pela área central da Corte minimizasse a imagem de muitos cadáveres sepultados num único local. Ainda que elas representassem o ponto de interseção dos cortejos fúnebres que atravessavam diariamente as ruas da cidade no auge da epidemia, com pessoas ou coches carregando seus caixões – de casa para um templo e, por vezes, passando por mais de uma igreja, antes de chegar à sepultura de destino do cadáver –, a distribuição dos sepultamentos pelas igrejas fragmentava a imagem da morte naquela conjuntura. Diferentemente desta pulverização, acredito que a concentração das inumações nos dois cemitérios especificados pelo Ministério do Império contribuiria para intensificação do medo da epidemia e de seu impacto mortal sobre a população da Corte, especialmente pelo fato de o cemitério do Catumbi ter aglutinado um alto percentual dos sepultamentos da Corte, a exemplo dos 3/4 das inumações das quatro freguesias de nossa amostragem. Exemplos são as dezenove inumações em 20 de março (no primeiro dia de seu funcionamento) e vinte e três em 23 de março[43]. Esta situação nos permite compreender por que Avé-Lallemant afirmou que nunca se esqueceria “da triste impressão que senti quando algumas vezes encontrei uma verdadeira fileira de cortejos fúnebres seguindo o caminho para Catumbi, quando vi voltar os carros em indigna desordem e grande pressa para buscar mais fregueses, como naqueles dias”[44]. Os “dias” mencionados por ele poderiam ser aqueles posteriores ao 20 de março, quando o Catumbi começou a receber centenas e mais centenas dos mortos da Corte.

 

 

 

 

 

 

Mapa 1: Principais freguesias “urbanas” da cidade do Rio de Janeiro[45]

 

FONTE: Adaptado de Karasch, Mary (2020), A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras, p. 103.

 

 

Assim como o efetivo fim dos sepultamentos nas igrejas, outros elementos dos rituais fúnebres católicos seriam impactados pelos dispositivos sanitários implementados pelas autoridades governamentais para controle da epidemia de febre amarela. Este seria o caso da encomendação dos cadáveres que passo a analisar, com vistas a responder se as medidas a ela relacionadas teriam implicado em alterações circunscritas ao período do surto ou se influenciariam definitivamente a prática das exéquias na Corte.

 

Impactos das restrições governamentais sobre a dinâmica paroquial da encomendação dos mortos

 

Importante etapa do funeral católico, o ofício de encomendação do cadáver era a cerimônia que antecedia o sepultamento eclesiástico e podia implicar na maior ou menor aglomeração de fiéis e clero dependendo das posses, posição social e redes de sociabilidade da família do morto. De um ritual realizado apenas pelo coadjutor da paróquia, circundado pela família e amigos mais próximos ao morto, poderia ter aparato solene que incluía um público mais alargado composto de até dezenas de sacerdotes acompanhando o pároco, além de parentes, amigos, associações religiosas e até curiosos. Consistindo na parte das exéquias, era composta pelas cerimônias litúrgicas que antecediam a deposição do morto na sepultura, quando o clero pronunciava orações, cantos e ofícios imediatamente após a morte, durante o velório quando o corpo estava exposto para a realização das despedidas. Em que pese a diferenciação entre um cerimonial com maior ou menor quantidade de sacerdotes, música e armação do ambiente, era a direção paroquial o aspecto que singularizava o ritual no qual se encomendava a alma do defunto. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que desde 1720 foram estendidas a toda a América portuguesa, o Direito Canônico determinava que nenhum defunto podia ser enterrado sem primeiro ser encomendado pelo seu pároco ou outro sacerdote a seu mandado. Para tal, as constituições sinodais ordenavam e mandavam que sempre que alguma pessoa morresse seu pároco deveria ser avisado com toda brevidade para que acudisse e encomendasse o fiel falecido com muita diligência onde este estivesse, portando sobrepeliz e estola preta ou roxa e guardando a forma disposta no Ritual Romano[46].

Além da dimensão clerical da encomendação, a sua compreensão como de direito paroquial decorria da afirmação de que os defuntos deveriam ser acompanhados pelo pároco de quem em vida receberam os sacramentos. No caso de algum defunto manifestar o desejo de ser enterrado fora de sua paróquia, ele deveria dar ao seu pároco a quarta parte das ofertas e esmolas para pagamento dos ofícios. Por este mesmo motivo, no caso de um pároco ter notícia do falecimento de alguma pessoa de fora de sua freguesia, era preciso mandar recado ao pároco da freguesia original para que este fosse encomendar seu paroquiano com diligência e ordem. Caso o pároco chamado não aparecesse para encomendar e acompanhar seu freguês defunto por si ou por outro clérigo com sua licença (em caso de estar legitimamente impedido de realizar a cerimônia), ele deveria pagar multa de mil réis por cada ausência. Ainda segundo as constituições sinodais, o clérigo que enterrasse um defunto sem ser encomendado e acompanhado pelo respectivo pároco deveria ser gravemente castigado, a não ser que ficasse comprovado que ele havia chamado o pároco original e este não comparecera nem enviara alguém diante de eventual impedimento.[47] Se o defunto tivesse que ser enterrado em outra igreja que não fosse a da sua freguesia ou mosteiro de religiosos, seu pároco deveria estar presente para fazer o ofício da encomendação e os demais ofícios de acompanhamento até entrar na igreja da sepultura[48]. Segundo o texto sinodal, as encomendações não deveriam ocorrer fora das igrejas onde os defuntos fossem enterrados ou onde fossem realizados os ofícios[49]. 

A amostragem dos registros de óbito das quatro freguesias aqui consideradas permite identificar a dinâmica pela qual o ritual da encomendação de cadáveres era adotado na Corte. Visando melhor identificar as inflexões dos índices conforme a implementação dos dispositivos sanitários durante a febre amarela (alguns dos quais já foram mencionados anteriormente e outros aos quais ainda vou abordar mais adiante), dividi os dados nos três grandes períodos mencionados: antes da epidemia (01/11/1848 a 30/11/1849), durante a sua ocorrência (01/12/1849 a 31/08/1850) e depois do surto (01/09/1850 a 31/12/1851), para analisar de que modo a febre amarela impactou a realização das exéquias. Em seguida, desmembrei os dados referentes ao período de ocorrência da epidemia em seis colunas conforme as datas dos dispositivos sanitários. Para não confundir a leitura das tabelas, colori estas colunas em cinza e as posicionei antes da coluna com o total de registros deste momento durante o surto, a fim de não as confundir com as colunas que reúnem os dados totais relativas ao período de antes e depois do surto. Os seis momentos relacionados aos dispositivos sanitários que foram apresentados nas colunas em cinza são: 1) de 1º de dezembro de 1849 até 14 de fevereiro de 1850 (antes da implementação do Aviso Imperial de 14/02); 2) de 15 de fevereiro até 4 de março (após a publicação do Aviso Imperial de 14/02); 3) de 4 até 16 de março (após a publicação do Regulamento Sanitário de 4/03); 4) de 17 a 30 de março (após a Circular de 16/03 proibindo os sepultamentos nas igrejas); 5) de 31 de março a 2 de abril (após a determinação de construção de uma capela para encomendação de cadáveres no cemitério do Catumbi); 6) de 3 de abril a 31 de agosto (após envio de Ofício imperial ao Bispo do Rio de Janeiro determinando a não realização de encomendações nos templos). A análise evolutiva dos índices gerais de encomendação durante o surto nos permite identificar de que forma os diferentes dispositivos sanitários impactaram a realização das exéquias[50]. 

Partindo da normatização eclesiástica estabelecida nas constituições sinodais, a análise se centrou sobre o local de realização das cerimônias e quem as conduzia, se o pároco ou outro sacerdote mediante sua licença. Após morrer tendo recebido os últimos sacramentos[51] no leito de morte, o fiel defunto deixava de pertencer à comunidade familiar, passando em corpo e alma para o domínio da Igreja[52]. As exéquias representavam, pois, o momento em que se concretizava a apropriação do morto pelo clero, tal qual afirma o texto sinodal ao não reputar a residência como o local mais adequado à realização de um ritual eclesiástico por excelência. Os dados da Tabela 1 confirmam essa tendência, no momento anterior à epidemia, quando as encomendações feitas na casa do falecido não alcançavam nem 5% dos casos. Enquanto as igrejas paroquiais representaram 31,2% dos locais de encomendação e as filiais (compreendidas aqui como as de irmandades, ordens terceiras ou conventos situados em cada freguesia) somaram 63,2% dos locais das cerimônias antes da febre amarela, as casas abrigaram uma quantidade significativamente inferior das exéquias (com 3,6%) e os cemitérios um índice menor ainda que as residências (com 0,7%)[53].

 

TABELA 1: Local da encomendação dos cadáveres antes, durante e depois da epidemia

Local

Antes

Durante

(até 14/2)

Durante

(até 4/3)

Durante

(até 16/3)

Durante

(até 30/3)

Durante

(até 2/4)

Durante

(até 31/8)

 

Total Durante

Depois

 

TOTAL

GERAL

 

 

Igreja

paroquial

575

(31,2%)

140

(33,2%)

50

(25,4%)

32

(15,7%)

14

(5,5%)

-

-

236

(12,8%)

1

(0,1%)

812

Igrejas

filiais

1162

(63,2%)

252

(60,0%)

135

(68,5%)

146

(71,6%)

43

(16,8%)

1

(2,0%)

6

(0,8%)

583

(31,6%)

3

(0,2%)

1748

Casa

66

(3,6%)

12

(2,8%)

5

(2,5%)

1

(0,5%)

44

(17,2%)

13

(26,5%)

179

(25,0%)

254

(13,8%)

283

(21,7%)

603

Casa

e igreja

2

(0,1%)

1

(0,2%)

-

-

1

(0,4%)

-

-

2

(0,1%)

-

4

Cemitério

13

(0,7%)

7

(1,7%)

2

(1,0%)

5

(2,5%)

72

(28,1%)

15

(30,6%)

300

(41,8%)

401

(21,7%)

634

(48,5%)

1048

Sem referência

22

(1,2%)

9

(2,1%)

5

(2,5%)

20

(9,8%)

82

(32,0%)

20

(40,8%)

233

(32,4%)

369

(20,0%)

385

(29,5%)

776

 

TOTAL

1840

421

197

204

256

49

718

1845

1306

4991


FONTE: Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro. 

Comparativamente ao período antes da febre amarela, os índices de encomendação em casa e no cemitério apresentaram crescimento substantivo durante e depois a epidemia, passando de 13,8% para 21,7% nas casas e de 21,7% para 48,5% nos cemitérios; ao mesmo tempo em que houve intensa redução dos templos como lugar de realização dos rituais: de 12,8% para 0,1% nas igrejas paroquiais e de 31,6% para 0,2% nas filiais. Se observarmos as seis colunas em cinza que apresentam os índices conforme o avançar do surto epidêmico, constatamos que esta inversão não ocorreu logo no primeiro momento em que o governo imperial publicou o Aviso de 14 de fevereiro. Muito pelo contrário, só começou a ocorreu cerca de um mês depois, quando da publicação da Circular de 16 de março, evidenciando certa resistência da população – ou do clero? – em deixar de realizar as exéquias nas igrejas. Se alguma alteração houve até este momento, foi circunscrita a uma leve tendência de deslocamento das cerimônias feitas nas igrejas paroquiais para as igrejas de irmandades, ordem terceiras e conventos. É possível que a diminuição das encomendações nas igrejas paroquiais a partir de 14 de fevereiro tenha se relacionado com os dois primeiros dispositivos no que se refere às restrições aos múltiplos enterramentos numa só igreja. A explicação para tal é que as sepulturas das igrejas matrizes tendiam a concentrar cadáveres de um público superior ao das suas igrejas filiais. Enquanto estas últimas eram majoritariamente buscadas pelos irmãos, as famílias dos mortos não filiados a irmandades religiosas ou ordens terceiras ou cujas associações não tinham templo próprio, tendiam a sepultar seus defuntos nas igrejas paroquiais[54]. Ao que parece, os párocos preferiram conceder mais licença autorizando encomendação por outro sacerdote em outro templo – ou eles mesmos para lá se dirigirem para realizar os ofícios – do que realizar as cerimônias nas casas dos falecidos.

A análise da Tabela 1 demonstra também que, juntamente com as casas, os cemitérios despontaram como locais de realização das exéquias apenas após a emissão da Circular de 16 de março. O que faz todo sentido para quem analisa hoje, uma vez que se tornaram doravante o local de sepultamento dos falecidos na cidade. O que não faz muito sentido, entretanto, é que somente a partir deste momento tenha se dado o crescimento das encomendações nas casas e não imediatamente após 14 de fevereiro. O tempo de pouco mais de um mês entre esta data e a da Circular representa muito num contexto de intensificação da contaminação e das mortes e nos leva a questionar os motivos da demora em cumprir os dispositivos governamentais que determinavam o deslocamento das encomendações das igrejas para as residências. Minha hipótese é que as cerimônias de encomendação estiveram até então fortemente atreladas ao local de realização dos sepultamentos. Considerando que se tratava de um ritual que antecedia o sepultamento propriamente dito, foi mais fácil as encomendações se deslocarem das igrejas para os cemitérios do que daquelas para as casas. Deste modo, enquanto as inumações ocorriam nas igrejas e os cadáveres deviam ser deslocados da casa para a sepultura nos templos, as encomendações continuaram a ser ali realizadas. A partir do momento em que os sepultamentos não puderam mais ser realizados nas igrejas, deslocando-se para os cemitérios, e os falecidos saiam de casa diretamente para os cemitérios, as encomendações passaram a ser majoritariamente feitas neste novo local de sepultamento. Ou seja, enquanto os sepultamentos não deixaram as igrejas, os ofícios de encomendação seriam ali realizados, independente das ordens governamentais.

Este argumento nos permite compreender o aumento das encomendações nas casas e sobretudo nos cemitérios a partir de 16 de março, mas ainda deixa dúvidas sobre os motivos da intensificação da realização das cerimônias nos cemitérios a partir de fins de março. O fato que explica essa inversão de posições entre as casas e os cemitérios foi a adoção de novo dispositivo sanitário, em 30 de março, retirando das casas a exclusividade do local de realização das encomendações ao determinar a construção de capelas no cemitério para a realização destas cerimônias. Foi neste sentido que o Chefe de Polícia da Corte, enviou ofício à Ordem Terceira de São Francisco de Paula determinando que no prazo de seis dias a instituição construísse “com decência e muito ligeiramente” uma capela provisória no cemitério do Catumbi para que as encomendações de cadáveres fossem nelas realizadas[55]. O aspecto interessante deste processo é que, consciente ou inconsciente da parte das autoridades imperiais, a construção de uma capela nos novos espaços de sepultamento seria uma forma de reunir novamente as exéquias e as sepulturas num mesmo local e, agora sim, ter mais condições de vencer a resistência da população – e/ou do clero? - em separar as duas partes dos funerais católicos como havia sido determinado no primeiro dispositivo sanitário, de 14 de fevereiro.

Ao que parece, a capela cemiterial provisória foi construída; o que pode ser explicado pelo aumento do índice de encomendações em cemitérios, inclusive suplantando a quantidade das encomendações realizadas nas casas, tanto após 30 de março de 1850 como mais intensamente após 2 de abril. Um aspecto importante neste processo é que o aumento das referências às encomendações nos cemitérios, em contraposição às feitas nas casas, foi acompanhado do igual crescimento do índice de ausência de referência ao local das encomendações nos registros paroquiais. Se num primeiro momento isto me levou a ter dúvidas de interpretação sobre as tendências dos dados, por não ver explicitado no assentamento paroquial o efetivo local de realização dos rituais, por outro é possível perceber que se tratou de caso pontual de escrita vaga do texto do registro de óbito. Em vez de o pároco ou seu coadjutor escrever a expressão “foi encomendado/a e sepultado/a no cemitério da Misericórdia/do Catumbi” ou “foi encomendado/a de licença no cemitério da Ordem Terceira de Catumbi”, a anotação destes registros apresenta a expressão “foi encomendado e jaz sepultado no Campo Santo do Caju" ou “foi encomendado por mim e jaz sepultado no cemitério do Catumbi/da Ordem Terceira de São Francisco de Paula”. Uma análise mais atenta demonstrou que a maioria dos 776 assentamentos de cadáveres encomendados cujo registro não precisa o local da encomendação se refere ao período posterior à epidemia, como se verifica na última linha da Tabela 1. Mais do que isso, são posteriores à emissão da Circular de 16 de março. O que me leva a cogitar que se referem a encomendações realizadas em cemitérios, após o fim dos enterramentos nas igrejas, mas que por algum motivo os párocos e seus coadjutores não especificaram o local da encomendação com maior precisão no livro paroquial.

Se somarmos os índices de ausência de referência à encomendação ao quantitativo das encomendações no cemitério após 16 de março, verificamos um aumento exponencial das exéquias em cemitérios nas três últimas colunas dos recortes temporais referentes ao período durante a epidemia, fazendo os índices saltarem de 12,3% (até 16/3) para 60,1% (até 30/4), 71,4% (até 2/4) e 74,2% (até 31/8). Índices que aumentariam para 78,0% após o fim da epidemia. Ao direcionar o olhar para as freguesias, constatamos no Quadro 2 a concentração dos índices de ausência de referências nas freguesias de Santa Rita e São José. Ao mesmo tempo, são destas a maior parte dos textos vagos do assentamento paroquial no que diz respeito ao local de realização da encomendação nestas duas freguesias. O que me levou a interpretar esta ausência como omissão dos respectivos sacerdotes que anotavam os assentamentos e a cogitar um efetivo crescimento das encomendações nos cemitérios tanto durante como depois da febre amarela.

 

Quadro 2: Quantidade de ausência de referência ao local da encomendação de cadáveres por freguesia antes, durante e depois da epidemia

Freguesia

Antes

Durante

(até 14/2)

Durante

(até 4/3)

Durante

(até 16/3)

Durante

(até 30/3)

Durante

(até 2/4)

Durante

(até 31/8)

 

Total Durante

Depois

Total

Geral

Santana

6

1

1

3

5

10

22

39

Candelária

1

1

1

6

1

9

18

36

55

Santa Rita

6

3

1

12

56

15

86

173

22

201

São José

9

5

2

4

17

4

133

165

305

479

FONTE: Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro

 

 

Reações do clero da Corte à proibição das encomendações de cadáveres nas igrejas

 

O Ofício do Chefe de Polícia da Corte, contudo, foi apenas a primeira de duas medidas governamentais impostas especificamente para restringir a realização de ofícios de encomendação de cadáveres nas igrejas. A segunda medida foi a tomada pelo Ministério do Império ao enviar um Aviso ao Bispo e Capelão-mor do Rio de Janeiro, D. Manuel do Monte Rodrigues de Araújo, em 2 de abril de 1850, solicitando que ele “expedisse as convenientes ordens” para que as irmandades e ordens terceiras “cessassem o abuso” de levar os cadáveres para encomendar nas igrejas e não em casa, como previsto no artigo 10 do Regulamento Sanitário. Segundo o Visconde de Monte Alegre, as associações religiosas se recusavam a cumprir a medida sob alegação de não terem recebido ordens de seu diocesano e era mister que o Regulamento fosse religiosamente comprido[56]. Este dado confirma a ilação feita anteriormente sobre a resistência em se cumprir os dois primeiros dispositivos sanitários. O que, de certa forma, é corroborado pelos dados da Tabela 1 quando vemos que a maioria das cerimônias ocorria nas igrejas das ordens terceiras e irmandades.

A resposta dada pelo bispo a este ofício demonstra o quanto a implementação dos dispositivos sanitários pelo governo imperial afetaria as relações entre Igreja e Estado, suscitando reações em defesa do direito paroquial sobre uma das principais cerimônias na dinâmica de funcionamento das paróquias, segundo o discurso clerical. Em sua resposta ao Ministro dos Negócios do Império, o Bispo enviou um longo documento em 23 de abril por meio do qual manifestou sua discordância para com o Aviso imperial recebido e, mais ainda, em relação ao Regulamento Sanitário vigente há quase dois meses. Iniciou sua contestação afirmando que o direito funerário compreendia tanto o lugar da sepultura como as exéquias (entre as quais estavam as encomendações), sendo ambas de “direito essencialmente paroquial”, assim como o da administração dos sacramentos. Como tal, não via razão para que ao se separar o lugar dos sepultamentos do local das exéquias, como feito por ocasião da febre amarela, não se pudesse realizar as encomendações nas igrejas ou em suas catacumbas, uma vez que os sepultamentos não se fizessem mais naquele espaço. Segundo ele, a realização das encomendações nas paróquias, especialmente no caso das cerimônias solenes para as quais se demandava o concurso de outros clérigos, propiciaria aos párocos que os clérigos convidados para assistência dos ofícios de encomendação os auxiliassem gratuitamente na realização de outros serviços religiosos demandados pela paróquia. O que aliviaria a carga de trabalho tanto do vigário como do seu coadjutor. Além do mais, isso  solucionaria o problema da concentração de encomendações solenes nas igrejas de confrarias e ordens terceiras, já identificado pelo bispo, que beneficiava o alívio da carga de trabalho dos capelães destas associações religiosas na obtenção de clérigos que lhes auxiliassem gratuitamente no trabalho diário, deixando os párocos das igrejas matrizes e seus coadjutores com todo o serviço paroquial, tendo em vista que o número das encomendações solenes nas igrejas paroquiais era muito menor. Para o prelado, esta situação ocasionava muitas vezes os embaraços enfrentados pelos párocos para acudirem os fiéis “com todas as obrigações de seu ofício”, como ocorria durante a epidemia de febre amarela, não permitindo nem que o pároco e seu coadjutor ficassem doentes ou tivessem outro impedimento qualquer, devido ao fato de não poderem contar com outros clérigos que lhes auxiliassem[57].

O Bispo acrescentou ainda que a realização das encomendações nas igrejas não lhe parecia causar nenhum perigo para a saúde pública, decorrente do acúmulo de cadáveres nos templos, porque as cerimônias poderiam ser distribuídas pelas seis igrejas paroquiais da Corte[58], diferentemente da sua concentração nas duas igrejas de Ordens Terceiras[59] que acumularam encomendações de cadáveres num ou outro dia durante aquela epidemia. Segundo ele, estas já tinham o costume de sepultar maior número de pessoas mesmo antes da proibição de 16 de março e ainda continuavam a realizar encomendações solenes. Diante disso, se ele tivesse que dar uma ordem sobre as encomendações em sua diocese, conforme determinado pelo Ministro do Império, esta deveria ser que as “encomendações d´alma”, privadas[60] ou solenes, fossem feitas daquele momento em diante nas igrejas paroquiais para onde os fiéis deveriam ser levados antes de serem destinados ao sepultamento em qualquer dos cemitérios[61].

D. Manuel do Monte Araújo alegou sentir muito que a ideia que propunha não fosse aquela do artigo 10 do Regulamento Sanitário, como solicitado pela autoridade imperial, a qual ele não podia aprovar pela simples razão de que as encomendações e outros ofícios pelas almas dos mortos eram atos públicos da religião, tendo lugar próprio para sua celebração. Neste momento, ele faz uma afirmação que nos ajuda a compreender aquele reduzido índice (3,7%) de encomendação em casa antes da epidemia, conforme visto na Tabela 1, ao dizer que as encomendações feitas nas habitações dos fiéis defuntos se constituíam em exceções ou casos pontuais, mas que o artigo 10 do Regulamento transformara em regra geral. Para ele, não havia inconveniente em que nas encomendações privadas os cadáveres fossem levados até a matriz para ali se lhe fazer a encomendação, visto que sempre haveria de ser tirado da casa para percorrer um longo trajeto pelas ruas da cidade até o “cemitério extramuros”. A justificativa para este posicionamento era que, se em tempo ordinário já era difícil que os párocos administrassem os sacramentos aos seus fregueses, pior ainda naquele período epidêmico quando tinham que acumular o serviço de ir pelas casas, muitas vezes distantes, para encomendar os mortos. Se, por um lado, estes não podiam mais ser sepultados nas igrejas paroquiais, por outro não havia razão para não serem nelas encomendados. Ao seu ver, a determinação de se fazer as encomendações nas casas era impraticável e ele não sabia se era prática adotada em algum outro lugar. Era impraticável pelos inconvenientes de se celebrar encomendações nas residências, especialmente no caso das solenes, pois a casa deveria oferecer comodidade para ser convenientemente armada e receber o clero armado em procissão que saía da matriz até a casa do defunto para entoar as orações pelos mortos. Considerando ainda a existência de convidados, não seria “toda e qualquer casa” e “toda e qualquer família” ou pessoas da casa do morto que poderiam querer “presenciar um espetáculo tão melancólico, os derradeiros e sentidíssimos adeus do pai, do esposo, do filho, do parente ou do amigo”. Já no sentido contrário, a condução dos mortos para as paróquias pouparia “tamanha sensibilidade aos vivos”. Por todos estes inconvenientes ele se via obrigado a responder ao Aviso ministerial com a ordem de que as encomendações se fariam nas casas dos finados quando fosse cômodo, principalmente se fossem solenes[62]. Além de não querer que as paróquias perdessem espaço para as igrejas filiais, o bispo não desejava perdê-lo também para as residências como local de realização de uma cerimônia considerada pela hierarquia católica como paroquial por excelência, ainda que isso não viesse ocorrendo na prática, como os dados da Tabela 1 evidenciaram. O tom da resposta de D. Manoel do Monte Araújo ao ministro dos Negócios do Império, Visconde de Monte Alegre, demonstra que, ao se dirigir à maior autoridade eclesiástica do bispado do Rio de Janeiro, o governo imperial ultrapassava o terreno da dimensão sanitária e abria espaço de interferência em assuntos da esfera de jurisdição paroquial.

Após a Independência e por todo o Império, as relações entre Estado e Igreja católica foram regidas pelo Padroado Régio, afirmando o catolicismo como religião de Estado, embora com crescente afirmação do regalismo imperial, especialmente a partir do segundo Reinado. Se o início do Império Brasileiro e o período regencial foram marcados por intensa participação política do clero de tendência liberal – defensor de maior autonomia perante Roma[63] -, seja no parlamento ou tomando parte de alguns dos movimentos revoltosos, o fortalecimento do Estado imperial a partir do segundo reinado, especialmente no contexto do pós 1842, com o chamado Regresso Conservador, se faria sentir no âmbito eclesiástico por intermédio da adoção de medidas com vistas a favorecer um clero disciplinado e distante das disputas partidárias. Esta tendência se manifestaria na adoção de uma série de reformas por meio das quais a burocracia civil passou a assumir atribuições e funções atribuídas ao poder espiritual, até então dominadas pelos párocos – especialmente os serviços públicos de maior penetração e controle social, tais como o sistema eleitoral, o registro de nascimentos, casamentos e óbitos e o controle dos cemitérios por questões higiênicas –, fazendo com que o Estado adquirisse progressiva autossuficiência burocrática e administrativa[64].

Paralelamente, fazendo uso das faculdades conferidas pelo Padroado Régio e pelo regalismo, o governo imperial passou a nomear bispos de tendência conservadora e ultramontana para as dioceses brasileiras, desde inícios da década de 1840, a exemplo de D. Antônio Ferreira Viçoso, para Mariana; D, Antônio Joaquim de Mello, para São Paulo, D. Romualdo Antônio de Seixas, para Salvador; D. José Afonso de Morais Torres, no Pará; e D. Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates, no Rio Grande do Sul. O paradoxo desta decisão é que tais prelados conduziriam reformas em suas dioceses no sentido de priorizar assuntos eclesiásticos e espirituais, marcando aproximação crescente com Roma, defendendo maior autonomia da Igreja em relação ao Estado, chegando a desafiar o regalismo. A Santa Sé, por sua vez, tentaria afirmar sua autoridade sobre a Igreja do Brasil, especialmente em decorrência da instalação da Internunciatura no Rio de Janeiro, após 1808, por ocasião da transmigração da corte portuguesa na América. A presença de representantes do papado na cidade do Rio incentivaria o movimento ultramontano, principalmente com o avançar do Segundo Reinado, quando do pontificado de Pio IX[65].

A implementação dos dispositivos sanitários pelo governo imperial com vistas a conter o surto de febre amarela na Corte se daria, portanto, num momento em que os processos citados acima se cruzaram, marcando certamente o início das tensões entre os poderes temporal e espiritual, em que pese o regime de união entre Estado e Igreja. O Aviso do Ministério dos Negócios do Império ao Bispo do Rio de Janeiro e a resposta dada por este evidenciam um terreno de disputa episcopal pela jurisdição eclesiástica de elementos centrais nos costumes fúnebres naquela sociedade na qual o catolicismo era religião de Estado, mas sob um governo com traços cada vez mais regalistas que, sob a bandeira do higienismo, afetaria áreas de domínio eclesiástico.

Nos estudos sobre os primeiros bispados de tendência ultramontana no Império brasileiro, o prelado do Rio de Janeiro, D. Manuel do Monte Araújo, não costuma ser citado entre os bispos reformadores de caráter conservador. Possivelmente, pela indefinição sobre sua posição, se regalista ou ultramontano. Nomeado o nono bispo do Rio de Janeiro, em 1839, era capelão-mor do Imperador D. Pedro II (assim como fora de D. Pedro I), sagrou o novo Imperador em 1841, além de ter atuado como deputado da Assembleia Geral em três legislaturas entre os anos de 1830 e 1840. Mas, ao mesmo tempo, ensinou Teologia no Seminário Episcopal de Olinda por dezesseis anos. Dentre outras atuações, publicou várias obras, como cartas pastorais de exortação à ortodoxia e a Memória que publicou anonimamente, segundo Sacramento Blake, com o sugestivo título de “Sobre o direito de primazia do soberano pontífice romano quanto à confirmação e instituição canônica de todos os bispos, traduzida do francês, em 1837. Dentre seus escritos, destacaram-se o “Compêndio de Theologia Moral”, publicado em 1837 (com seis edições), e “Elementos de Direito Ecclesiastico Pùblico e Particular”, publicado entre 1857 e 1859[66]. Este último, publicado quando já atuava como bispo, foi marcado pela heterodoxia e pelo que Benedetta Albani e Anna Clara Martins denominaram de “sincretismo”, ao mesclar uma combinação variada de autores que incluía os de posições jurisdicionalistas – alguns dos quais simpatizantes do galicanismo e do jansenismo em defesa do alargado alcance do poder civil em matéria eclesiástica –, com outros de ideias ultramontanas. Aspecto que levou esta sua obra a ser condenada pela Congregação do Índice dos Livros Proibidos. Tal fato, contudo, não impediu que ambas as obras alcançassem êxito não só nos seminários e no meio clerical, mas também na formação dos bacharéis e no âmbito burocrático imperial, ao serem utilizadas como referências citadas nas posições do Conselho de Estado[67]. A combinação destas informações explique a caracterização de D. Manuel do Monte Araújo como autor de uma escrita mais sóbria, descritiva, sem expressar abertamente seu posicionamento pessoal. O que, segundo Albani e Martins, não significaria neutralidade política, mas antes uma posição politicamente equilibrada que o prelado “buscava guardar com o governo imperial e a Santa Sé, entes munidos de diferentes (e mesmo contraditórios) interesses”[68]. Aspecto deste “equilíbrio” pode ser identificado na sua posição firme contra o Regulamento Sanitário, em que pese sua posição de proximidade com o Imperador. Afinal, o que esteva em jogo na determinação de que as encomendações de cadáveres fossem feitas nas habitações era o fato de a medida ir de encontro ao tradicional Direito Eclesiástico, tema presente em suas publicações.

Neste seu posicionamento, D. Manuel do Monte Araújo não esteve sozinho. Sua autoridade entre os clérigos do Rio de Janeiro pode ser evidenciada na repetição de elementos do seu combativo discurso frente ao Ministro do Império por outros membros da hierarquia católica da Corte, a se considerar alguns dos artigos publicados no periódico católico, A Religião[69], ao longo do segundo semestre daquele ano de 1850, mesmo após a diminuição do surto epidêmico.

O pároco da freguesia de Santana, Monsenhor Manuel Joaquim Miranda Rego, um dos editores deste jornal e em 1/7/1850 publicou artigo por meio do qual buscou comentar as questões que agitavam a corte naquele momento a respeito dos funerais e criticar a crítica situação das paróquias da Corte diante do fim dos enterros nas igrejas. Para ancorar seu discurso, usou o exemplo das paróquias de Paris que, mesmo com o estabelecimento de um novo cemitério central e extramuros – o Père-Lachaise – não foram prejudicadas financeiramente. Segundo Miranda Rego, os decretos de Napoleão de 1804 que atribuíram às fábricas das paróquias de Paris uma lei geral uniformizaram seus ganhos por meio da exclusividade da oferta de objetos ligados ao serviço funerário, seguindo o Direito Canônico e conferindo rendimento às paróquias. Diferentemente desta, seria a situação confusa na qual se encontravam, ao seu ver, as paróquias no Rio de Janeiro, uma vez que não possuíam uniformidade de funcionamento nem de rendimentos e com o fim dos sepultamentos viam suas fábricas ameaçadas de não terem nem como pagar os sineiros, muito menos como manter a dignidade e a nobreza do culto católico. Afinal, afirmou ele, a paróquia deveria ser as escolas normais do culto católico na sua mais rigorosa instituição canônica[70].  

Um destaque a ser feito é que o Monsenhor Miranda Rego era o pároco que atuava em uma das freguesias cujos registros de óbito foram aqui analisados e a computação dos dados sinaliza para uma clara diferenciação no modo como ele procurou manter os ofícios de encomendação sob estrito controle paroquial, diferentemente das outras três freguesias. O Quadro 3 demonstra que Santana foi a única freguesia na qual as cerimônias de encomendação realizadas na igreja matriz não eram tão inferiores em quantidade às feitas em templos de associações religiosas filiais à paróquia, tanto antes como durante e depois da epidemia de febre amarela.

 

Quadro 3: Quantidade de encomendação por tipo de igreja (paroquial e filial) conforme a freguesia, antes, durante e depois da febre amarela

Freguesia

Tipo de Igreja

Antes

Durante

(até 14/2)

Durante

(até 4/3)

Durante

(até 16/3)

Durante

(até 30/3)

Durante

(até 2/4)

Durante

(até 31/8)

Total Durante

Depois

Total

Geral

 

Santana

Paroquial

345

81

19

20

6

-

-

126

1

472

Santana

Filiais

348

60

29

36

7

-

-

132

2

482

Santa Rita

Paroquial

205

54

23

12

-

-

89

-

294

Santa Rita

Filiais

270

58

30

31

8

-

-

127

-

397

São Jose

Paroquial

13

2

6

-

3

-

-

11

-

24

São Jose

Filiais

386

94

66

58

8

1

1

228

1

615

Candelária

Paroquial

12

3

2

5

10

 

22

Candelária

Filiais

158

40

10

21

20

5

96

 

254

FONTE: Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro

 

 

Outra publicação contrariando as restrições sanitárias quanto à realização das encomendações nas igrejas saiu na edição de 15/07/1850 do mesmo jornal. Desta vez, em artigo escrito pelo padre Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro sobre “os cemitérios”, por ocasião do início da discussão do Senado acerca da lei de criação dos definitivos cemitérios públicos extramuros na Corte[71]. Iniciando pela diferenciação entre exéquias e sepultura, seu texto repetia a maior parte dos argumentos enunciados na resposta do bispo ao Ministro do Império, ao defender o argumento da natureza paroquial das encomendações e questionar o artigo 10 do Regulamento Sanitário[72].

Duas semanas depois, o pároco de Santana retornou ao embate, publicando um artigo em 1/8/1850, no qual insistiu na diferença entre exéquias e sepultura, mas agora para se contrapor à determinação governamental de construção de capelas em cemitérios e em defesa do retorno das encomendações às igrejas paroquiais. Mobilizando novamente o exemplo de Paris, argumentou que os cemitérios extramuros lá criados em 1804 não possuíam capelas para realização dos ofícios fúnebres, pois estes ainda eram realizados nas igrejas matrizes. Segundo ele, até o último dia em que os enterros foram feitos nas igrejas do Rio de Janeiro, nenhuma das ordens terceiras, convento ou irmandades da Corte havia sepultado em suas catacumbas ou cemitérios sem que estes fossem primeiro encomendados pelo respectivo pároco ou mediante sua licença. Nunca haviam feito uma encomendação solene que não fosse realizada ou pelo pároco respectivo e clero da matriz que dela saia processionalmente de cruz alçada ou com sua licença[73].

Ao que parece, ele estava falando mais de sua paróquia. Esta argumentação vai ao encontro dos dados citados no Quadro 3, que evidencia um pároco bastante cioso dos direitos paroquiais e atuante na sua freguesia. Um dos indícios desta afirmação é a sua iniciativa de dar visibilidade à igreja que paroquiava por meio da deposição no templo da relíquia de uma santa que, uma vez exposta, transformou a igreja de Sant’Anna em um concorrido altar na cidade[74]. Talvez por esta característica, ele tenha se envolvido numa altercação com a Ordem Terceira de São Francisco de Paula, dias depois da publicação deste artigo, a respeito da capela que havia sido construída no cemitério do Catumbi no início de abril. Considerando que o cemitério estava localizado em sua paróquia e que, portanto, a capela estava sob sua jurisdição, Miranda Rego enviou uma representação ao bispo, em 8 de agosto, argumentando que o vice-comissário da ordem terceira estaria presidindo ofícios fúnebres solenes na capela cemiterial, com o auxílio de clero convidado por ele, sem a assistência ou licença paroquial de Miranda Rego. Na missiva, o monsenhor afirmou ao bispo que desde a sua fundação o cemitério recebia os corpos provenientes de outras freguesias sem recomendação nem licença do pároco de Santana, a quem pertencia o direito de recomendação como pároco do distrito onde o cemitério se localizava, “segundo o direito e praxe inalterável do Bispado do Rio de Janeiro”. Diante disso, pedia que o bispo não vedasse o seu direito de presidir todos os ofícios divinos e solenes que fossem celebrados na capela daquele cemitério, além de ele mesmo poder convidar o clero para os ditos atos e, por fim, que nenhum corpo proveniente de outra freguesia para ser ali sepultado pudesse ser encaminhado ao cemitério com violação do direito de recomendação que pertencia ao pároco único daquela capela; ou seja, ele mesmo[75].

Antes de responder ao pároco, o Bispo D. Manuel do Monte ouviu o Pro-Comissário da Ordem Terceira de S. Francisco de Paula, Francisco Luiz Fernandes Pinto, sobre os fatos relatados pelo monsenhor Miranda Rego. Em resposta este informou que nem nas antigas catacumbas da igreja nem no atual cemitério extramuros se recebera cadáveres para serem sepultados e tampouco os sepultara e realizara encomendações sem licença dos respectivos párocos ou sem se satisfazer a justiça devida às igrejas paroquiais. Contentando-se com esta afirmação, o bispo se dirigiu ao pároco de Santana para reafirmar que a Ordem Terceira de S. Francisco de Paula era isenta de jurisdição paroquial e sujeita imediatamente à Diocese, com quem se conservava pacificamente há longos anos, por privilégio adquirido em provisão episcopal de 1763, breve apostólico de 1779 e aviso régio de 1806. Entretanto, essa isenção não compreendia as exéquias, que não poderiam ser feitas sem obtenção de licença paroquial. Por fim, o prelado afirmou que, apesar de o cemitério e sua capela estarem na área de jurisdição da paróquia de Santana, ambos deveriam usufruir das mesmas condições de privilégio da respectiva ordem terceira, especialmente por terem sido disponibilizados à população para fazer frente às demandas daquele contexto epidêmico. Deste modo, o bispo compreendia que a ordem e o pró-comissário não teriam excedido nos seus privilégios e não havia razão fundada na representação de Miranda Rego[76].

Um dos motivos para a invectiva dos clérigos aqui citados contra os dispositivos sanitários pode ser a queda brutal das encomendações nas igrejas, especialmente após 30 de março, se considerarmos os dados das freguesias aqui analisadas. Se entre as igrejas filiais, houve oscilação dos índices nos seis diferentes momentos de adoção dos dispositivos sanitários durante o surto (de 60,0% para 68,5%; 71,6%; 16,8%; 2,0% e 0,8%), a queda dos índices de realização das encomendações de cadáveres nas igrejas paroquiais foi progressiva, mas com ausência de total de encomendação já a partir de 30 de março (33,2%; 25,4%; 15,7%; 5,5%, 0,0%e 0,0%). Efetivamente, as paróquias perderam espaço para as casas e principalmente para os cemitérios enquanto locais de realização das encomendações de cadáveres, após o momento em que as autoridades imperiais determinaram a construção de capelas nos cemitérios extramuros. Resta aprofundar o estudo sobre se os direitos paroquias teriam sido resguardados, como preconizado na legislação eclesiástica. De qualquer forma, exemplo de como até mesmo as igrejas das associações religiosas sentiram a perda do seu templo religioso enquanto espaço de realização dos ofícios de encomendação é que após o fim do surto, várias delas se dirigiam às autoridades imperiais para solicitar autorização para encomendar em suas igrejas, entre 1851 e 1852, sendo todos os pedidos deferidos pelas autoridades imperiais[77].

Entretanto, com a criação e o início do funcionamento dos dois cemitérios públicos extramuros da Corte – de São Francisco Xavier, no Caju, em dezembro de 1851, e de São João Batista, na Lagoa, em dezembro de 1852 –, o assunto voltaria à discussão, pois ao serem administrados pela Santa Casa da Misericórdia em sistema de monopólio, toda a dinâmica do serviço fúnebre na cidade passou a ser regida por regulamentos únicos para ambos os cemitérios. Tais documentos normativos definiam desde aspectos ligados à infraestrutura daquelas necrópoles, à distribuição dos espaços e terrenos de sepultura, aos diversos tipos de trabalhadores que ali atuariam, à normatização dos funerais, dentre outros, inclusive o que dizia respeito às capelas e às encomendações de cadáveres. Tanto o primeiro regulamento, de 14/06/1851, como o que o substituiu, em 17/02/1855 e o posterior, de 03/08/1861, resguardaram o direito paroquial ao afirmar que “a nenhum cadáver se fará encomendação de sepultura nas capelas dos cemitérios públicos, sem certidão do respectivo pároco, de ter sido por ele encomendado na casa do finado ou na igreja da freguesia”[78]. Embora o texto dos regulamentos mencione o resguardo do direito paroquial sobre as encomendações e cite as casas e igrejas como locais nos quais elas poderiam ocorrer sob a direção paroquial, é preciso ainda investigar a execução que tanto a administração dos cemitérios públicos deu a esta medida, bem como a frequência da prática da encomendação de cadáveres.

O que temos por enquanto é a constatação de que restrições impostas pelas medidas sanitárias causaram alterações significativas no tradicional ritual das exéquias ao colocarem definitivamente os cemitérios como a referência não apenas do local de sepultamento, mas também como espaço privilegiado de encomendação do cadáver. A questão que fica é sobre a dimensão quantitativa dos paroquianos que continuariam levando seus falecidos à igreja para realização dos ofícios de encomendação ou receberiam os párocos em sua casa. Ao que parece, o problema criado pela epidemia só se acentuaria, a se considerar as novas ações de párocos em defesa do direito de encomendação paroquial dos cadáveres surgidas nos anos seguintes. Só que agora, a disputa seria contra a Santa Casa da Misericórdia e seu monopólio sobre os cemitérios e o serviço funerário na cidade[79], em defesa de que a declaração paroquial de encomendação fosse efetivamente exigida para que se desse sepultura nas novas necrópoles. Sob qual argumento? O de que os paroquianos estariam deixando de ir às igrejas para realizar a encomendação, dirigindo-se diretamente para os cemitérios. Seriam demandas decorrentes dos costumes fúnebres nos novos tempos[80]. Mas costumes que se desenvolveram a partir da implementação dos dispositivos sanitários e que contribuiriam para o processo de esvaziamento do papel da paróquia e do pároco como figuras preponderantes dos rituais funerários.

 

Palavras Finais

 

Escrever este artigo no contexto da pandemia de COVID-19 me possibilitou analisar a relação entre epidemia e transformação dos rituais funerários de uma perspectiva diferente da que fiz anos atrás quando eu não estava imersa numa conjuntura com várias similitudes em relação ao passado. A maior delas é poder perceber de forma bastante concreta a desarticulação dos ritos funerários até então vigentes. Uma das percepções mais evidentes do meu presente que invadiu as reflexões neste artigo foi identificar a dimensão dos dispositivos sanitários e das restrições por eles impostas aos costumes fúnebres do passado de uma forma que eu não tinha me dado conta antes. Uma série de circunstâncias impõe dificuldades de se realizar as práticas que cada sociedade, cultura e religião adota em épocas ditas normais. O número desenfreado de mortes e o medo do contágio desestruturam elementos/etapas dos rituais, dificultando a prestação dos cuidados aos moribundos; abreviando ou restringindo as cerimônias de despedida; impondo formas nem tão aceitáveis de se dar o destino aos numerosos cadáveres, especialmente no caso das práticas de inumação; além do impacto sobre rituais de luto... A tal ponto que chega um momento em que não conseguimos diferenciar muito bem se determinada afirmação se refere ao século XIX ou ao XXI!

Mas, focando nosso olhar sobre o Oitocentos, a análise aqui desenvolvida demonstrou o quanto os dispositivos sanitários implementados diante da epidemia de febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, a partir do momento em que foi oficialmente reconhecida pelo governo imperial em fevereiro de 1850, contribuíram indelevelmente para a transformação de significativos elementos das atitudes católicas diante da morte vigentes no Império brasileiro, algumas das quais remontavam aos primeiros momentos da instalação portuguesa na América. Na linha da recorrente expressão presente nos discursos clericais aqui analisados, podemos diferenciar o impacto da epidemia sobre as exéquias e as sepulturas.

No caso das sepulturas, embora os dispositivos sanitários não tenham imposto a sua proibição de início, a intensificação da epidemia com a ampliação do número de mortes confluiu para a adoção de um dispositivo derradeiro para os costumes funerários da cidade. Ao mesmo tempo que a Circular de 16 de março encerrou a secular prática de sepultamento nas igrejas, foi o ponto de partida para a criação de cemitérios extramuros para os quais os cadáveres de toda uma cidade seriam enviados. Ainda durante o surto epidêmico, tratou-se de um cemitério público improvisado. Mas a medida foi apenas o primeiro ato que antecedeu a implantação definitiva de cemitérios públicos extramuros menos de dois anos depois. As novas necrópoles criadas na Corte abririam um leque de possibilidades para novas formas e regras de gestão dos sepultamentos e do local das sepulturas, de cortejo fúnebre, de funerais, adorno das sepulturas, novo tipo de comércio com o advento dos marmoristas; venda de objetos fúnebres, desenvolvimento do culto familiar aos mortos, a nova frequência com que se visitava os entes queridos falecidos num lugar mais distante, desenvolvimento de nova dinâmica no Dia de Finados, dentre outras inovações.

No caso das exéquias, diferentemente das sepulturas, pudemos identificar as dificuldades que as autoridades governamentais tiveram para direcionar os rituais de encomendação das igrejas para as casas, desde a implantação do primeiro dispositivo sanitário em 14 de Fevereiro. Enquanto foi possível, as paróquias, irmandades, conventos e ordens terceiras se mantiveram resistentes em continuar a realizar as encomendações nos templos sob argumento de que as casas não eram o espaço adequado para uma cerimônia sagrada e clerical. Mesmo após a edição dos primeiros dispositivos sanitários, os rituais continuaram a ser realizados nas igrejas antes de se dar sepultura aos cadáveres que adentravam o templo. Esta situação foi possível até o momento em que os sepultamentos nas igrejas foram proibidos e foi necessário deslocar os mortos para os cemitérios extramuros de caráter provisório. Ainda assim, foi preciso que as autoridades imperiais percebessem a necessidade de criar um espaço que igualasse os templos dentro dos cemitérios, determinando a construção de uma capela no cemitério que mais dava sepultura na cidade.

 O fim dos sepultamentos nas igrejas foi determinante para que as encomendações fossem efetivamente deslocadas para as residências dos fiéis, num primeiro momento, e para os cemitérios, em seguida. Mas ao mesmo tempo que possibilitou a concentração dos sepultamentos em apenas dois cemitérios afastados das dezenas de igrejas nas ruas centrais, a Circular de 16 de março evidenciou uma certa tendência de as encomendações acompanharem o lugar de sepultamento. Neste sentido, quando as inumações se concentraram nos cemitérios, estes passaram a ser os espaços nos quais se realizaram a maior quantidade das cerimônias de encomendação das semanas finais do período de vigência da epidemia até depois do surto. É deste modo que a epidemia de febre amarela, ao proibir a realização das encomendações nas igrejas, seria um primeiro passo para novas alterações nos costumes fúnebres católicos.

A resistência clerical em deslocar os rituais de encomendação para as casas se justificava com base no argumento de que elas eram não eram o espaço sagrado que suportavam as cerimônias públicas das exéquias, como definidas na legislação eclesiástica. As razões enunciadas por uma parte do clero do Rio de Janeiro para não cumprir os dispositivos sanitários logo de início tinham como fundamento o direito canônico que definia os ofícios de encomendação como de jurisdição paroquial. Mas também se fundamentavam na necessidade de se utilizar da presença dos acólitos que faziam a assistência ao pároco nos ofícios solenes como forma de obtenção de auxílio para a execução do serviço paroquial, especialmente no contexto epidêmico. O argumento utilizado nos textos dos sacerdotes era que a realização das encomendações nas casas dos falecidos ampliaria e dificultaria o cumprimento do serviço paroquial, por exigir o deslocamento dos párocos e/ou seus coadjutores para as casas dos fiéis defuntos. Considerando que não eram todas as casas preparadas para tal cerimônia, especialmente no caso das encomendações solenes, e que não viam risco em que as famílias parassem na igreja antes de levar seus defuntos ao cemitério, os textos clericais defendiam o cancelamento dos dispositivos que determinavam que as encomendações fossem realizadas nas casas. A análise dos registros paroquiais demonstra que esse desejo não se realizou. Nos posicionamentos do bispo do Rio de Janeiro e de outros membros da hierarquia eclesiástica católica, foi perceptível a reação ao avanço do governo imperial sobre assuntos considerados da esfera da jurisdição eclesiástica, em nome da política higienista. Não acredito que estes já representariam elementos de uma política conscientemente laicista, mas tão somente parte de ações de caráter regalista no sentido do desenvolvimento da burocracia civil mencionado anteriormente, especialmente no contexto de construção da ordem imperial que ainda demandava o consórcio com a Igreja[81]. O que não nos impede de identificar nestas ações elementos significativos que contribuíram para o desenvolvimento do processo de enfrentamento e disputas muito mais explícitas e incisivas entre regalismo e ultramontanismo, cujo desdobramento será a chamada Questão Religiosa, na década de 1870, na qual também podem ser incluídas as disputas por jurisdição sobre cemitérios e enterramentos, como analisei em outro trabalho[82].

 Os indícios documentais que se tem para o período posterior sinalizam para novos pronunciamentos clericais reclamando o quanto teriam perdido o controle paroquial das encomendações desde o início do funcionamento dos cemitérios públicos extramuros com seus regulamentos. Uma investigação mais detida sobre como se deu este último processo é um tema aberto em busca de futuras análises que poderão comprovar se as alterações aqui evidenciadas nos dados paroquiais seriam duradouras e se as restrições sobre as encomendações durante a epidemia de febre amarela teriam efetivamente representado o marco do delicado processo de esvaziamento do papel da paróquia nos rituais funerários católicos na Corte imperial.



[1] Rodrigues, Claudia (1997), Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres na Corte, Secretaria Municipal de Cultura/Divisão de Editoração (Coleção Biblioteca Carioca), Rio de Janeiro, e Rodrigues, Claudia (2014), “A criação dos cemitérios públicos do Rio de Janeiro enquanto ‘campos santos’ (1798-1851)”, Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, vol. 8, pp. 257-278.

[2] As oito freguesias eram: Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, São José, Candelária, Santa Rita, Santana, Engenho Velho, Glória e Lagoa. A etapa de coleta das fontes para realização deste trabalho foi realizada durante o período de maior intensidade da COVID-19. Diante do fechamento dos arquivos devido ao isolamento social, recorremos às imagens dos livros paroquiais de óbito pertencentes ao Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro que se encontram digitalizadas e disponíveis no site do Family Search (https://www.familysearch.org/pt/). A intenção inicial era incluir a freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé na amostragem, mas não foi possível por dois erros da organização das imagens no acervo digital: o livro da freguesia de Santa Rita relativo aos anos de 1842 a 1851 aparece no lugar do livro de óbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento e o livro do Santíssimo Sacramento correspondente ao intervalo de 1848 a 1853 não consta entre os registros de 1843 a 1861. A necessidade de continuar a pesquisa nos levou a seguir sem contar com aquela que era a freguesia mais populosa da Corte. A coleta dos assentos paroquiais foi feita com o inestimável auxílio de meus orientandos da Iniciação Científica do Curso de Graduação em História da UNIRIO (Maria Luiza Pereira da Silva, Felipe Leal Spinelli, Vitória Dias Fernandes e Fernando Brito) e meu orientando de mestrado Laércio de Araújo Sousa Júnior, aos quais agradeço imensamente.

[3] Para aprofundamento dos aspectos históricos, econômicos e sociais destas freguesias, ver alguns dos estudos já clássicos sobre a cidade, que devem ser complementados por diversas teses e dissertações de mestrado com enfoques mais atualizados, cuja maioria já se encontra disponível on-line: Lobo, Eulália Maria Lahmeyer (1978), História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro, Rio de Janeiro, IBMEC, 2 vols.; Abreu, Maurício (1997), Evolução urbana do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, IPLANRIO; Fridman, Fânia (1999), Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Garamond; Karasch, Mary (2000), A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras; Enders, Armelle (2002), História do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Gryphus; Schultz, Kirsten (2008), Versalles tropical: império, monarquia e Corte real português no Rio de Janeiro, 1808-1821, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

[4] Avé-Lallemant, Robert (1851), Observações acerca da epidemia de febre amarela no ano de 1850 no Rio de Janeiro: colhidas nos hospitais e na policlínica, Rio de Janeiro, Typ. de J. Villeneuve & Comp., p. 9.

[5] Franco, Odair (1969), História da febre amarela no Brasil, Rio de Janeiro, Ministério da Saúde, Departamento Nacional de Endemias Rurais, Rio de Janeiro/GB, pp. 25-35; Benchimol, Jaime Lary (2001), Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online], Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ; Dellamarque, Elizabete Vianna (2011), Junta Central de Higiene Pública: vigilância e polícia sanitária (antecedentes e principais debates), Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, pp. 49-50.

[6] Rodrigues, Claudia (1999), Lugares dos mortos e “A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50)”, Hist. Cienc. Saude-Manguinhos [online], vol. 6, n. 1, pp. 53-80.  https://doi.org/10.1590/S0104-59701999000200003.

[7] Em relação ao quase monopólio dos médicos da Academia Imperial de Medicina sobre o discurso médico na década de 1850 e seu papel central nos debates e na formulação das políticas públicas de saúde no Império, ver Santos, Júlio Cesar Paixão (2017), A circulação das ideias de estatística no Segundo Reinado: periodismo, discurso científico e ciências biomédicas no Rio de Janeiro (c. 1840-c.1872), Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz,  p. 222 e Edler, Flávio (2011), A Medicina no Brasil Imperial: clima, parasitas e patologia tropical, Rio de Janeiro, Fiocruz, pp. 155-159. Tal domínio do discurso acadêmico-científico de médicos alopáticos da Academia Imperial de Medicina não significa, porém, seu monopólio nas práticas de cura, uma vez que as chamadas terapêuticas populares, incluindo a homeopatia, as benzeduras e outras práticas de cura constituíam a maioria das ações frente às doenças, sendo amplamente aceitas e requisitadas pela população. A este respeito, ver Pimenta, Tânia Salgado, “Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos”, História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online], 2004, vol. 11, suppl 1, p. 68 [Acessado 15 Abril 2022], pp. 67-92. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000400004>.

[8] “Aviso de 14 de Fevereiro de 1850”, Manda observar as providências organizadas para prevenir, e atalhar o progresso da febre amarela. In: Colecção das Decisões do Governo do Império do Brasil, “Aditamento ao Caderno 2º” (1851), Tomo XIII, Typographia Nacional, Rio de Janeiro, pp. 260-264.

[9] O artigo não estipulava o tempo das exumações. Mas se considerarmos as posturas da cidade do Rio de Janeiro, promulgadas em 1830, é muito provável que não fosse inferior a dois anos, haja visto que o §2º da primeira seção do Título “Sobre cemitérios e enterros”, proibia a abertura de sepultura já ocupada por outro cadáver antes de dois anos, no caso das catacumbas, e antes de três anos, no caso das covas. Cf. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Posturas da Camara Municipal do Rio de Janeiro 1830, Typographia Imperial e Nacional, Rio de Janeiro, 1830. Em outro documento podemos constatar uma crítica ao “prejudicial costume” de sepultamento no interior ou no entorno das igrejas não apenas pelo “prejuízo” que causavam à saúde pública por serem as sepulturas “um pouco rasas”, mas também pela prática de se fazer exumações no intervalo de 8 a 12 meses, “tempo insuficiente para a consumição dos corpos”. Cf. Monteiro, José Chrysostomo (1873), Notícia histórica da fundação do cemitério da venerável Ordem Terceira dos Mínimos de são Francisco, em Catumbi Grande, Rio de Janeiro, Typ. do Apóstolo, p. 5.

[10] Aviso de 14 de Fevereiro de 1850, Ob. Cit., p. 263-264.

[11] Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). Portaria do Ministro do Império, Visconde de Monte Alegre, remetendo à Câmara as instruções para prevenir e atalhar o progresso da febre amarela. Rio de Janeiro, 14/02/1850 In: Moraes Filho, Mello (comp.) (1894), Código de Posturas, leis, decretos, editais e resoluções da Intendência Municipal no Distrito Federal. Compilação feita por ordem da Prefeitura, pela repartição do Arquivo Geral, Rio de Janeiro, Papelaria e Typographia Mont’Alverne, p. 80. Disponível em: file:///C:/Users/Dell/Downloads/000111259.pdf Acesso em 15 de março de 2022. Ver cópia manuscrita deste documento disponibilizada no site do Arquivo do Senado. Documentos digitalizados do Império sobre Cólera, febre amarela, hanseníase e varíola. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/arquivo/documentos-do-imperio/05-postura-sobre-febre-amarela-de-19_02_1850. Acesso em 12/04/2022.

[12] A proibição dos dobres de sinos era parte da vigilância auditiva proposta por médicos higienistas sob o argumento de que o som lúgubre, especialmente diante de tantas mortes, afetava emocionalmente os moribundos ao trazer à sua mente a insistente imagem da morte. Cf. Reis, João José (1991), A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, p. 263-266; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 66-89.

[13] Exemplos desta legislação são a Portaria de 15/11/1825 emitida por D. Pedro I deliberando aos párocos da cidade o cumprimento da Carta Régia de 14/01/1801 que, em vão, determinara o fim da tradicional prática de inumação nos templos e a Lei de 1º de outubro de 1828 que reestruturou as atribuições das câmaras municipais de todo o império e estendeu a Portaria de 1825 destinada ao Rio de Janeiro para todo o país, conferindo às municipalidades o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos. Cf. Reis, João José, 1991. Ob. Cit., pp. 274-276; Rodrigues, Claudia, 2014, Ob. Cit., pp. 259-263; Rodrigues, Claudia, “Morte e rituais de enterramento”. In: Oliveira, Cecília Helena de Salles e Pimenta, João Paulo (orgs.) (2022), Dicionário da Independência: História, memória e historiografia, São Paulo/Lisboa, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin/Instituto Camões (no prelo).

[14] BN/RJ, Hemeroteca Digital, Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 14 de Fevereiro de 1850, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/094170/per094170_1850_08327.pdf Acessado em 1/4/2022.

[15] Feital, José Maria de Noronha (1850), Memória sobre as medidas conducentes a prevenir e atalhar o progresso da febre amarela, Rio de Janeiro, Typ. do Brasil, p. 17.

[16] Franco, Odair, 1969, Ob. Cit., p. 38. Aviso de 4 de Março de 1850. Manda executar o Regulamento sanitário organizado para as Comissões Paroquiais de Saúde Pública, criadas por Aviso de 14 de Fevereiro deste ano. In: Colecção das Decisões do Governo do Império do Brasil, “Additamento ao Caderno 3º”, Tomo XIII, 1850, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, pp. 266-272. Muito embora a doença também tenha se alastrado pelas demais freguesias, consideradas rurais, as medidas tomadas pelas autoridades imperiais concentraram-se nas paróquias centrais mais próximas ao porto. Para exemplo da divulgação deste regulamento nos jornais da Corte, ver BN/RJ. Hemeroteca Digital. Diario do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ed. 8344, 6 de Março de 1850, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/094170/per094170_1850_08344.pdf  Acessado em 23/03/2022.

[17] Benchimol, Jaime Lary, 2001, Ob. Cit., p.114.

[18] Destaco no artigo 22 a determinação de que qualquer publicação de temas relativos à saúde pública na imprensa deveria ser revista e aprovada pela Comissão Central de Saúde Pública. O que pode explicar o desaparecimento dos obituários dos jornais no contexto epidêmico

[19] Aviso de 4 de Março de 1850, Ob. Cit., p. 268.

[20] Sobre a disseminação das concepções médicas acerca dos miasmas, especialmente no que tange às emanações cadavéricas, na primeira metade do século XIX, ver Reis, João José, 1991, Ob. Cit., pp. 252-262; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 59-66; Araújo, Ana Cristina (2020), “Vicente Coelho de Seabra Silva Teles e a reforma dos cemitérios”, Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, vol. 4, nº 8, pp. 229–243. https://doi.org/10.9789/2525-3050.2019.v4i8.229-243. Acesso em 29 de abril de 2022.

[21] Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 62; Rodrigues, Cláudia, 1999, Ob. Cit., pp. 61-62.

[22] Sobre a prática dos armadores de velórios, ver Bruno, Aguiomar Rodrigues (2020), A morte como negócio: os mercadores fúnebres no interior fluminense (Piraí, século XIX), Tese (Programa de Pós-graduação em História/PPGH-UNIRIO), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO.

[23] Feital, José Maria de Noronha, 1850, Ob. Cit.; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 60-61.

[24] Sobre a vigilância olfativa e auditiva preconizada por médicos sanitaristas, como o Dr. Feital, ver Reis, João José, 1991, Ob. Cit., pp. 252-262; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 59-66; Araújo, Ana Cristina, 2020, Ob. Cit., p. 263-266; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 66-89.

[25] Rego, José Pereira, Esboço histórico das epidemias que têm grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870 (1872), Rio de Janeiro, Typ. Nacional, pp. 58-59.

[26] No mesmo período em que os teatros foram fechados, como mencionados anteriormente.

[27] Nesta e nas demais referências ao Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro, o conteúdo das informações dos livros de registros paroquiais óbitos das quatro freguesias aqui pesquisadas foi extraído mediante a transcrição dos assentos relativos ao nosso recorte cronológico que se encontram no banco de dados de imagens do site FamilySearch, intitulado “Registros da Igreja Católica, 1616-1980”, disponível em: https://familysearch.org. As freguesias e respectivos livros consultados são: Nossa Senhora da Candelária (Óbitos 1833, Ago-1876, Out; Óbitos 1838, Jun-1867, Jul), são José (Óbitos 1843, Jul-1864, Set; Óbitos 1844, Maio-1851, Jul; Óbitos 1851, Jul-1877, Nov), Santa Rita (inserido entre os registros do Santíssimo Sacramento como Óbitos 1842, Jan-1851, Fev) e Sant’Ana (Óbitos 1846, Set-1853, Out). Este Banco de Dados pertence ao conjunto de acervo documental e de outros Bancos de Dados produzido no âmbito do Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO.

[28] Rego, José Pereira, 1872, Ob. Cit., p. 15.

[29] Avé-Lallemant, Robert, 1851, Ob. Cit., p.11.

[30] A título de comparação, a análise dos dados para o período anterior à epidemia de febre amarela apresenta uma quantidade bem inferior, havendo igrejas que passavam mais de um dia sem receber um único sepultamento.

[31] “Circular de 16 de Março de 1850”, Proíbe os enterramentos nas Igrejas, e Conventos da Capital, ou no seu recinto. In: Colecção das Decisões do Governo do Império do Brasil, Additamento ao Caderno 3º, Tomo XIII, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1850, pp. 273-274. Serzedello, Bento José Barbosa, Arquivo histórico da venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, ereta no Rio de Janeiro desde sua fundação em 1648 a 1872, Rio de Janeiro, Typ. Perseverança, 1872, p. 326. Para aprofundamento deste processo ver, Rodrigues, Claudia, 1999, Op. Cit.

[32] Somente seis anos depois foram proibidos os enterros nas igrejas das freguesias suburbanas da cidade do Rio. Em Edital de 7 de outubro de 1856, a câmara municipal determinou a proibição em cumprimento da Portaria da Secretaria dos Negócios do Império de 25 de setembro. Embora este caso ainda não tenha sido estudado, é muito provável que tal iniciativa tenha se relacionado à epidemia de cólera-morbo que atingiu a cidade em 1855. Cf. AGCRJ, Códice 58-2-7. “Edital de Postura de 7 de outubro de 1856 proibindo enterramentos nas igrejas”.

[33] Além desses, não podemos esquecer de outros dois cemitérios em área descoberta da cidade: o Cemitério da Gamboa, destinado aos ingleses e demais não católicos, localizado nas redondezas da freguesia de Santa Rita, e o Cemitério do Hospício de Pedro II, destinado aos mortos no Hospício administrado pela Santa Casa da Misericórdia, localizado no extremo sul da cidade, na Praia Vermelha, que atendia também aqueles que habitavam essa região mais distante da área portuária. Cf. Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 32, Rodrigues, Cláudia, 1999, Ob. Cit.

[34] Na dinâmica das associações religiosas, as ordens terceiras reuniam membros da elite social desde o período colonial. A este respeito, ver Martins, William de Souza (2009), Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822), São Paulo, Edusp.

[35] Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 8 e 14.

[36] A demais referências são 0,08% no cemitério dos Ingleses, na Gamboa; 1,51% no terreno provisório concedido à Ordem Terceira de N. S. do Carmo no Campo do Caju e 0,43% no terreno concedido à Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência no Campo do Caju; 1,99% no cemitério de São Francisco Xavier (criado a partir de 05 de dezembro de 1851). Cf. Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro.

[37] Até que fosse inaugurado o primeiro cemitério público extramuros da cidade, no início de dezembro de 1851, denominado de São Francisco Xavier, localizado no terreno do antigo Campo Santo da Misericórdia da Ponta do Caju. Um segundo cemitério público extramuros entrou em funcionamento em dezembro de 1852, no extremo sul da cidade, denominado São João Batista, situado em área próxima à do antigo cemitério do Hospício de Pedro II, na Praia Vermelha (que deixou de funcionar imediatamente). Ambos os cemitérios foram administrados pela Santa Casa da Misericórdia, que assumiu o monopólio do serviço fúnebre na Corte. A este respeito, ver Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.; Rodrigues, Claudia, 2014, Ob. Cit., pp. 267- e El-Karch, Almir Chaiban (2004), “Um golpe de mestre: ‘enterrar os mortos e cuidar dos vivos’: José Clemente Pereira e a aprovação do projeto senatorial de criação de cemitérios públicos no Rio de Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, nº 422, p. 11-32.

[38] Expressão usada em Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 9.

[39] Sobre isso ver Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra Nascimento (2012), “Morte, Cemitérios e hierarquias no Brasil escravista (séculos XVIII e XIX)”, Habitus, vol. 10, pp. 3-30; Bravo, Milra Nascimento (2014), “A morte hierarquizada: os espaços dos mortos no Rio de Janeiro Colonial (1720-1808)”, Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, nº 8, pp. 307-329.

[40] Batista, Henrique Sergio de Araújo (2011), Jardim regado com lágrimas de saudade: morte e cultura visual na Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (século XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,.

[41] Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra Nascimento, 2012, Ob. Cit.; Bravo, Milra Nascimento, 2014, Ob. Cit. Apesar desta diferença entre os dois cemitérios, os administradores do Catumbi tiveram que abrir sepulturas gratuitas para pobres e indigentes. Cf. Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 9.

[42] Seguem algumas das igrejas das oito freguesias urbanas da Corte: 1) na freguesia do SANTÍSSIMO SACRAMENTO (Matriz do Santíssimo Sacramento, Ig. da O. T. de São Fco. de Paula, Ig. da O. T. de São Fco. da Penitência, Ig. de N.ª Sr.ª do Parto, Ig. do Senhor dos Passos, Ig. do convento de Santo Antônio, Ig. da O. T. de N.ª Sr.ª da Conceição e B. Morte, Ig. da O. T. de S. Domingos, Ig. do Senhor Bom Jesus do Calvário, Ig. de N.ª Sr.ª do Rosário, Ig. de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Ig. de S. Gonçalo Garcia e S. Jorge, Ig. de N.ª Sr.ª da Lampadosa); 2) na freguesia da CANDELÁRIA (Ig. da Ord. Terc. de N.ª Sr.ª do Carmo, Ig. de N.ª Sr.ª Mãe dos Homens, Ig. de S. Pedro, Ig. Santa Cruz dos Militares, Ig. de N. S. Lapa dos Mercadores); 3) na freguesia de SÃO JOSÉ (Ig. de N.ª Sr.ª do Bonsucesso, Ig. de N.ª Sr.ª do Carmo do convento dos Carmelitas, Ig. de Santa Luzia); 4) na freguesia de SANTA RITA (Matriz de Santa Rita, Ig. do Mosteiro de S. Bento, Ig. de S. Joaquim); 5) na freguesia de SANTANA (Matriz de Sant’Anna); 6) na freguesia da GLORIA (Matriz de N. Sra. da Glória); 7) na freguesia do ENGENHO VELHO (matriz de São Francisco do Engenho Velho); 8) na freguesia da LAGOA (Matriz de São João Batista da Lagoa). Destaque deve ser feito para as igrejas matrizes da Candelária e de São José que não davam sepultura no período aqui analisado e, por isso, seus templos não figuram na relação acima.

[43] Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro.

[44] Avé-Lallemant, Robert, 1851, Ob. Cit., pp. 11-12.

[45] Na inexistência de outra representação que contivesse todas as freguesias urbanas da Corte, faço uso do já clássico mapa elaborado por Mary Karasch que, entretanto, não contém as freguesias da Lagoa e do Engenho Velho, mas apenas as seis paróquias mais referidas nos documentos da época.

[46] Vide, Dom Sebastião Monteiro da (2010[1719]), Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia,. São Paulo, Edição de Bruno Feitler e Evergton Sales Souza, EdUSP, § 812. Esta forma aparece no manual de Veríssimo dos Martyres, reeditado várias vezes, que detalha a encomendação do cadáver no Ofício de Defuntos e vai ao encontro das determinações das constituições sinodais do Brasil. Cf. Martyres, Verissimo dos (1780), Director Funebre Reformado para se officiar, e administrar com perfeição o Sacrosanto Viatico, Extrema-Unção aos enfermos, Enterros, Officios de Defuntos, Procissão das Almas, e outras funções pertencentes aos mortos, Lisboa, Regia Officina Typografica.

[47] Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob. Cit., §§ 813, 814, 815.

[48] Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob. Cit., § 823.

[49] Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob. Cit., § 823.

[50] Reforço que os limites deste artigo inviabilizam uma análise mais aprofundada, que considere as variações sociais, de gênero, de origem, de idade e também por paróquias, dentre outras, as quais serão feitas em outro momento, considerando o potencial dos dados recolhidos.

[51] Os índices de administração dos últimos sacramentos em estudos sobre as freguesias urbanas do Rio giram em torno de 60%, dificilmente ficando abaixo desta média. Cf. Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.; Bravo, Milra Nascimento (2014), As hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808), Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO.

[52] Araújo, Ana Cristina, 1997, Ob. Cit., p. 230.

[53] Os 13 casos de encomendação feita em cemitério se referem a escravos ou libertos encomendados e sepultados no cemitério do Campo Santo da Misericórdia, no Campo Santo do Caju (antes da criação de cemitérios públicos extramuros), destinado aos desprivilegiados daquela sociedade e que não conseguiram ser inumados junto aos templos católicos. Cf. Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra Nascimento, 2012, Ob. Cit.

[54] Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 229-234.

[55] Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 15.

[56] Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Coleção Marques de Olinda: Exposição dos motivos, feita por M. B. C. C. M (Manuel, Bispo Conde Capelão-mor) pelos quais não está de acordo com o aviso de Visconde de Mont’Alegre determinando que, pelo regulamento sanitário da Corte, fica proibida a encomendação de corpos nas Igrejas, Palácio da Conceição, 23/04/1850.

[57] IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob. Cit., pp. 1-4.

[58] Aqui, ele parecia considerar as freguesias mais centrais, como Santíssimo Sacramento, São José, Candelária, Santa Rita, Santana e Glória, destacando as da Glória e do Engenho Velho, mais distantes das ruas centrais, situação condizente com a representação das freguesias urbanas do Mapa 1.

[59] O bispo não cita quais seriam elas, mas imagino que se tratava das da Ordem Terceira do Carmo e da de São Francisco de Paula.

[60] Interessante aqui é o termo “privado” usado para diferencias a encomendação solene e atraía grande quantidade de participantes que possuíam dimensão mais pública.

[61] IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob. Cit., pp. 4-5.

[62] IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob. Cit., pp. 1-4.

[63] Santirocchi, Italo Domingos (2016), “O ultramontanismo no Brasil imperial e a reforma clerical (1840-1889)”, in Ayrolo, Valentina; Oliveira y Anderson José Machado de (coords.), Historia de clérigos y religiosas em las América: conexiones entre Argentina y Brasil (siglos XVIII y XIX), Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Teseo, p. 402.

[64] Santirocchi, Italo Domingos (2015), Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889), Fino Traço, Belo Horizonte, MG, pp. 120 e Bastos, Ana Marta Rodrigues (1997), Católicos e Cidadãos: a Igreja e a legislação eleitoral no Império, Rio de Janeiro, Lúmen Júris, pp. 12-13.

[65] Santirocchi, Italo Domingos (2013), “Ela está no meio de nós: a Santa Sé e sua tentativa de recuperação de autoridade no Brasil Imperial”, in Anais do XVIII Encontro Regional da ANPUH MG: Dimensões do poder na história, Trabalho Completo, pp. 1-2 e Santirocchi, Italo Domingos, 2016, Ob. Cit., p. 404-405.

[66] Blake, Augusto Victorino Alves Sacramento (1900), Diccionario bibliographico brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, vol. 6, pp. 164-167.

[67] Albani, Benedetta; Martins, Anna Clara Lehmann Martins (2020), “A governança da Igreja escrita entre o nacional e o global: a presença das congregações cardinalícias em manuais brasileiros de direito eclesiástico (1853-1887)”, Almanack, nº 26, pp. 21-22; 58.

[68] Albani, Benedetta; Martins, Anna Clara Lehmann Martins, 2020, Ob. Cit., p. 61.

[69] Sobre este jornal católico, que circulou na cidade do Rio de Janeiro entre 1848 e 1850, ver Oliveira, Anderson José Machado de (1995), Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial (1840-1889), Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-graduação em História Universidade Federal Fluminense, Niterói, p. 70-71; 85-86. Abreu, Martha (1999), O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 78.

[70] BN/RJ, Obras Raras, A religião, nº 2, vol. III, 15 de julho de 1850.

[71] Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.; Batista, Henrique Sergio de Araújo (2011), Ob. Cit., p. 138.

[72] BN/RJ, Obras Raras, A religião, n. 2, vol. III, 15 de julho de 1850.

[73] BN/RJ, Obras Raras, A religião, n. 2, vol. III, 1º de agosto de 1850.

[74] Para tal, se dirigiu à Roma e, lá, mediante autorização papal (Gregório XVI), obteve acesso às catacumbas de S. Sebastião, escolhendo as relíquias de Santa Prisciliana, virgem mártir, imolada nas primeiras perseguições do início do Cristianismo. Providenciou o adorno dos ossos sagrados com cera para dar o formato de uma donzela, transportando-o numa arca para o Rio de Janeiro. Contando com a participação do Bispo D. Manoel do Monte Araújo, uma grande e pomposa procissão foi realizada em 17 de maio de 1846 para traslado da imagem da santa para a Igreja paroquial de Santana, na qual a santa relíquia ficou exposta para veneração do clero, irmandades e população – e lá se encontra até hoje –, amealhando esmolas e tornando-se a base de uma irmandade instalada na paróquia com o nome da santa, Irmandade da Sagrada Virgem Mártir Priscilliana. Cf. Ewbank, Thomas (1976), A vida no Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, pp. 221-227.

[75] Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., pp. 21-23.

[76] Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 20.

[77] Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 137-138.

[78] Vasconcellos, Zacarias de Góes e (1879), Legislação sobre a Empresa Funerária e os cemitérios da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Typ. da Escola de Serafim José Alves.

[79] Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.

[80] Rodrigues, Claudia (2005), Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, pp. 212-216.

[81] Carvalho, José Murilo de (1996), A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro das Sombras: A política imperial.  2.ed, Rio de Janeiro, Relume-Dumará: UFRJ.

[82] Rodrigues, Claudia (2005), Ob. Cit.; Rodrigues, Claudia (2010), “Os cemitérios públicos como alvo das disputas entre Igreja e Estado na crise do Império (1869-1891)”, Dialogos, vol.13, p. 119 – 142.